Data: Assunto: |
28/07/98 Ciranda Da Criança |
Matéria:
O PARQUE MUNICIPAL
Existe em B.H um lugar especial,
O lago do quiosque,
O Parque Municipal é um paraíso,
O Parque Municipal é muito legal,
Parabéns para Belo Horizonte, |
Esse poema é uma produção coletiva do 3º Período do Jardim Municipal Cornélio Vaz de Melo
Recorte do Projeto BH 100 (Estudo de Poesias)
Professora: Consuelo Maria Venâncio Salomão
SUMÁRIO
Com o envolvimento dos educadores infantis da Rede Municipal de Educação, a Política de Educação Infantil vem sendo construída e tem apresentado grandes avanços nos últimos anos. Sob a coordenação do CAPE, os fóruns, rodas de debates e seminários delineiam um movimento de ação-reflexão-ação promovendo a formação continuada. A edição do terceiro número da Revista Infância na Ciranda da Educação tenta contemplar esse movimento. O enfrentamento dos desafios ainda encontrados na construção de uma política de educação includente, no
contexto da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, as dinâmicas vivenciadas pelos educadores infantis na Rede Municipal de Educação e a permanente intenção educativa de liberar a expressão da infância constituem ações significativas que, ora registradas, propiciam novas reflexões. Que permitem novas vivências. Que permitem novos registros. Que permitem novas reflexões...
Esse movimento de formação vem cada vez mais se generalizando também nas escolas. E talvez seja este o ritual mais interessante que o Programa Escola Plural está inserindo na cultura dos educadores.
Diretora do Centro de Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação |
A Nova LDB e a Educação Infantil
Fátima Regina Teixeira de Salles Dias1
Estamos diante de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: a Lei n.º 9394, promulgada em 20 de dezembro de 1996, que vem explicitar e regulamentar o capítulo referente à educação da Constituição Federal de 1988. Da leitura do texto legal, pode-se depreender o confronto de interesses diversos, muitas vezes antagônicos, refletindo seu processo de produção. Constatam-se avanços, limites e retrocessos mas, inegavelmente, abrem-se novos espaços de reivindicação e de luta, que devem ser ocupados pelos profissionais da educação e pela sociedade civil, como um todo. No que se refere à Educação Infantil, a LDB reitera o que foi conquistado na Constituição e traz definições complementares relativas ao atendimento educacional às crianças de zero a seis anos de idade. Para que se possa avaliar em que medida essas determinações legais se constituem em avanços para a área, é necessário situar historicamente essa Lei, no contexto da Educação Infantil no Brasil. Visando trazer alguns elementos que contribuam para uma reflexão, esse artigo pretende, inicialmente, fazer, de forma breve, essa contextualização histórica. Em seguida, buscará destacar as definições da Lei que dizem respeito a esse nível da educação, tentando avaliá-las quanto aos ganhos que possam representar, bem como apontando seus limites e perspectivas. Além disso, serão discutidos alguns pontos que, a nosso ver, merecem ser explicitados através de normas complementares pelos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação.
Um Breve Histórico
A preocupação com o atendimento à criança de 0 a 6 anos no Brasil surge no momento em que o processo de industrialização do país exigia a entrada da mulher no mercado de trabalho. No decorrer desse século, constata-se um percurso histórico, marcado pela diluição da responsabilidade do Estado em relação à criança brasileira, tratando-a de forma fragmentada: órgãos são criados, substituídos, extintos, vários programas são implantados, transferidos, superpondo-se a ação de vários ministérios nesse atendimento. Esse trabalho esteve sempre atrelado ao estabelecimento de prioridades políticas e se
caracterizava muito mais por um cunho assistencialista, centrando o atendimento educacional apenas na faixa etária de 4 a 6 anos.
A legislação acompanhou todo esse percurso. Assim, em 1943, a CLT determina a criação de lactários em empresas que tenham em seus quadros mães trabalhadoras. Em 1961, a primeira LDB(Lei n.º 4024) se refere aos "Jardins de Infância" e, como conseqüência do disposto na CLT, define que as empresas que
tivessem mães trabalhadoras, com filhos menores de sete anos, seriam estimuladas a organizar instituições de educação pré-primária.
Em 1971, com as reformas da LDB, a Lei n.º 5692, além de definir que os sistemas de ensino seriam os responsáveis por estimular as empresas a criarem jardins de infância ou equivalentes, determina que esses sistemas "...velarão para que as crianças de idade inferior a sete anos recebam conveniente educação em escolas
maternais, jardins de infância e instituições equivalentes".(art. 19, § 2º).
Os próprios termos utilizados nessas determinações legais - "estimular", "velar" - dão-nos a dimensão da fluidez no tratamento dessa questão pela legislação: não se definem claramente competências, responsabilidades, mecanismos de cobrança e controle desse atendimento e, muito menos, os recursos financeiros para a sua viabilização. Essas imprecisões da Lei são reflexo e, ao mesmo tempo, refletem as indefinições das políticas públicas para a educação infantil. A despeito dessas indefinições, há um grande crescimento do atendimento às crianças de zero a seis anos no Brasil, marcadamente nas duas últimas décadas. Entre os fatores que explicam essa expansão, além da crescente participação da mulher no mercado de trabalho, estão o avanço do conhecimento científico sobre o desenvolvimento da criança e o reconhecimento da importância da educação nos primeiros anos de vida. A conjugação desses fatores foi determinante para que setores populares, institucionais e acadêmicos se mobilizassem e se organizassem no movimento "Criança e Constituinte", que culminou com a inclusão do atendimento em creches e pré-escolas no capítulo da Educação, pela primeira vez em uma Constituição Federal.
Logo em seguida, ainda nesse clima de ampla participação dos vários setores, é redigido o primeiro projeto da LDB A ele são acrescentadas emendas, outros projetos, até que, em 1990, foi aprovado o "Substitutivo Jorge Hage" na Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados. Esse "Substitutivo", embora não fique isento de críticas, traz explicitações importantes no que se refere à Educação Infantil. Essas dizem respeito à sua pertinência no âmbito dos sistemas de ensino, à sua finalidade, à sua organização e funcionamento, às articulações com outros sistemas, ao currículo, aos profissionais e, principalmente, ao financiamento.
Outros substitutivos são apresentados na Câmara dos Deputados e, paralelamente, o Senador Darcy Ribeiro dá entrada no Senado a um outro projeto de LDB, de sua autoria. Depois de várias tramitações é este o novo projeto de LDB, sancionado em 20/12/96.
O Texto da LDB:
significados e perspectivas
No que se refere à Educação Infantil, o texto da LDB aprovado mantém alguns dos artigos que constavam do "Substitutivo Jorge Hage", mas reduz e elimina outros. Traz uma visão bem condensada da educação para essa área, que se por um lado favorece a flexibilidade diante da diversidade educacional desse país, por outro abre possibilidades de ambigüidade na interpretação da lei, principalmente se considerarmos a novidade da inclusão do atendimento à criança de 0 a 6 anos no capítulo da Educação da nossa Constituição.
Dever do Estado, Direito da criança, opção da família:
No artigo 4º do Título III (DO DIREITO À EDUCAÇÃO E DO DEVER DE EDUCAR), a nova LDB define:
"O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de (...) IV - atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos".
Esse Artigo reproduz o que determina a Constituição de 1988 em relação à Educação Infantil, determinação essa considerada uma grande conquista para a área: a creche foi caracterizada como instituição educacional e não apenas assistencial, garantindo-se tanto o cuidar quanto o educar no atendimento às crianças menores de sete anos; por outro lado, houve o reconhecimento do direito da criança pequena à educação enquanto cidadã e não apenas enquanto filha da mulher trabalhadora. Cabe esclarecer que, seguindo tendência internacional, esse nível de educação não foi definido na Constituição como obrigatório, cabendo à família a opção pelo atendimento a seus filhos. O Estado, entretanto, tem o dever de atender à demanda.
Sem dúvida alguma, é o reconhecimento da importância da educação nos primeiros anos de vida que impulsionará, cada vez mais, a ampliação dessa demanda, que, ao longo dos anos, tem sempre vindo atrelada à reivindicação pela melhoria da qualidade.
Educação Infantil:
incumbência dos Municípios
A LDB incumbe a União de estabelecer, em colaboração com os Estados e os Municípios, competências e diretrizes que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum. Entretanto, é aos municípios que compete a responsabilidade sobre o atendimento. Assim, no Art. II, do TÍTULO IV (DA ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NACIONAL) determina que:
"Os Municípios incumbir-se-ão de:
Inegavelmente, diante da forma superposta e fragmentada como sempre foi tratada a questão da infância brasileira, pode-se considerar um avanço a concentração da responsabilidade pelo atendimento educacional da criança nos Municípios. Entretanto, as novas responsabilidades que lhes foram conferidas encontram a
maioria deles em precárias condições técnicas e, principalmente, financeiras.
A Lei não define destinação específica de verbas para esse atendimento que, sabemos, é bastante oneroso, em função das características que lhe são peculiares. O salário-creche, proposto no Substitutivo Jorge Hage, foi considerado inconstitucional. Dentro dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição para a Educação (25%), 15% devem ser aplicados apenas no Ensino Fundamental (1ª a 8ª séries), de acordo com a Lei do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Lei n° 9424, de 24/12/96). Os 10% restantes se prestam à aplicação na Educação Infantil mas não podemos considerá-los exclusivos, pois existem outras despesas com educação no município. Esse é um ponto de grande estrangulamento da lei, já que é impossível se definir Políticas Públicas eficientes e responsáveis, sem que haja verbas suficientes para a sua viabilização.
Um outro aspecto a se considerar é a falta de dados sobre a demanda por atendimento às crianças de 0 a 6 anos nos Municípios. É importante ressaltar que esses dados não podem se confundir com aqueles do censo populacional, pois
trata-se aqui de dados de demanda, isto é, o número de crianças dessa faixa etária cujas famílias desejam o atendimento em creches ou pré-escolas. Acreditamos que a exigência de um cadastramento seja matéria para regulamentação pelo órgão normativo do Sistema responsável, já que, como consta na lei, é permitida ao Município "a atuação em outros níveis de ensino, somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência..."
O Sistema de Ensino responsável
A nova Lei incumbe os Municípios de criarem Sistemas Municipais de Educação, apesar de lhes deixar a opção "por se integrar ao sistema estadual de ensino ou compor com ele um sistema único de educação básica". (Parágrafo único, Art. 11)
Caso o Município opte pela criação de seu sistema de ensino, terá que instituir um órgão normativo, que se incumbirá de baixar normas complementares para esse sistema. Ao Município competirá, também, autorizar, credenciar e supervisionar os estabelecimentos do seu sistema de ensino. (Art. 11)
Esses sistemas municipais de ensino, de acordo com o Art. 18, compreendem:
Assim, podemos vislumbrar o estabelecimento de padrões mínimos de qualidade para o atendimento às crianças menores de sete anos, mesmo que a Lei não tenha se pronunciado sobre parâmetros específicos para a Educação Infantil. Sem dúvida, isso representa um avanço para uma área que sempre esteve a mercê da negligência do Poder Público e de abusos por parte daqueles que não têm um compromisso com a qualidade desse atendimento.
Na iniciativa privada, as instituições que trabalham com crianças de 0 a 6 anos são atualmente organizadas como "cursos livres", não estando sujeitas às normas que são estabelecidas para os demais níveis educacionais. Acreditamos que, sem se desconsiderar a realidade na qual o sistema de ensino responsável se insere e
tendo como norte as determinações mais gerais que serão estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação, deverão ser baixadas normas relativas a:
Condições físicas dos estabelecimentos.
É fundamental que se leve em conta, também, nessa normatização, as diferenças determinadas pelas características e necessidades específicas de cada uma das idades que compõem a faixa etária desse nível educacional, bem como as possibilidades de, tanto as creches, quanto pré-escolas funcionarem em horário parcial ou integral.
Educação Infantil:
primeira etapa da educação básica
No capítulo que aborda sobre a composição dos níveis escolares, a Educação Infantil é integrada à Educação Básica, tendo, dentro desse nível mais amplo, uma seção específica na Lei, composta de três artigos:
Podemos analisar o Art. 29 como trazendo um conceito moderno de Educação Infantil, desde que consideremos o que está implícito ao Texto. Nesse sentido, quando se aponta como finalidade da Educação Infantil "o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade", podemos, implicitamente, compreender:
Entretanto, estamos sujeitos a inferências que podem levar a interpretações de outra natureza. Para se evitar distorções que venham comprometer a qualidade do atendimento, acreditamos que esses aspectos devam ser explicitados pelos órgãos normativos, definindo referenciais pedagógicos que garantam a identidade da Educação Infantil. Esses devem enfatizar as necessidades específicas do desenvolvimento das crianças dessa faixa etária, o brincar como sua atividade fundamental e suas possibilidades de acesso aos bens culturais, garantindo a dimensão educativa do trabalho, sem perder de vista a dimensão do cuidado. Cabe
fazer, ainda, uma ressalva ao artigo 29, quando, após a definição da finalidade da Educação Infantil, ele acrescenta: "...complementando a ação da família e da comunidade". É inegável o papel preponderante da família na educação das crianças dessa faixa etária. Além disso, é fundamental considerarmos a sua inserção numa determinada cultura que as constitui e que é por elas constituída. Entretanto, questionamo-nos se, ao atribuir um papel complementar à comunidade na educação das crianças, não se está abrindo uma possibilidade de se onerar a comunidade em detrimento da responsabilização do Poder Público.
Quanto ao Art. 30, define-se a divisão entre as instituições "creche" e "pré-escola", pelo critério exclusivo da faixa etária. Esse critério pode ser avaliado como um ganho para a área, na medida em que tira da creche o seu estigma social, isto é, ser considerada uma instituição para crianças pobres. No entanto, sabemos que
os conceitos são historicamente construídos e não será uma definição em lei que dissipará essa representação social. Certamente outros fatores deverão se conjugar para que essa tentativa se concretize na prática.
A importância do que se determinou no Art. 31 sobre a avaliação das crianças nesse nível educacional pode ser dimensionada pelo confronto com o caráter de terminalidade que vem sendo imprimido à educação infantil, em algumas localidades: as crianças são retidas na pré-escola até que se alfabetizem, isto é, não é permitido que ingressem na primeira série do ensino fundamental, caso não tenham atingido os padrões desejáveis no que se refere à aprendizagem da leitura e da escrita. Nesse sentido, a Lei pode coibir essas anomalias e outras do mesmo gênero, além de possibilitar o acompanhamento do processo de evolução das
crianças.
Os profissionais da educação infantil
O Art. 62 define que:
"a formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal."
Diante do quadro de profissionais da educação infantil existente, principalmente no que se refere àqueles que atuam nas creches, muitos dos quais não têm sequer a formação em nível de ensino fundamental, pode-se considerar um avanço o que foi preconizado pela Lei. Primeiramente, avalia-se como um ganho em relação à importância alcançada pela Educação Infantil, que, como primeira etapa da Educação Básica, passa a exigir um profissional mais qualificado. Além disso, há um ganho em relação ao próprio profissional que passa a pertencer a uma categoria e, como tal, pode exigir seus direitos. Finalmente, trata-se de um
avanço no que se refere ao beneficiário de Educação Infantil - a criança - que passa a ser atendida por um profissional mais valorizado e, supostamente, mais qualificado para o trabalho.
Essa suposição se deve ao fato de que atualmente inexistem cursos que formem esse "docente" da Educação Infantil. As peculiaridades do trabalho desenvolvido com crianças entre 0 a 6 anos, principalmente com as menores, exigem uma formação interdisciplinar desse profissional. Nesse sentido, os órgãos normativos deverão regulamentar sobre as disciplinas e exigências de um Curso Normal, que forme, de fato, esse profissional. Além disso, frente à realidade atual, é de fundamental importância o estabelecimento de prazos para que os profissionais que estejam em serviço completem o nível mínimo exigido para a docência na Educação Infantil. Acredita-se, ainda, ser necessário definir o "auxiliar" como um profissional que atuará com as crianças juntamente com o professor. Esse deverá ter como nível mínimo de escolaridade o ensino fundamental e qualificação específica para o trabalho que desenvolverá.
Por outro lado, é necessário que o Poder Público crie estratégias para que os profissionais que estejam em serviço nas creches e pré-escolas tenham possibilidade de se qualificar para o trabalho, atingindo os níveis definidos em lei. É fundamental também que, nesse processo, sejam consideradas as experiências que esses profissionais vêm acumulando em sua prática.
Conclusão
Podemos concluir que a nova LDB traz elementos que, de certa forma, garantem o que foi conquistado na Constituição de 1988, em relação ao atendimento educacional às crianças menores de sete anos. Se confrontamos com a legislação anterior, podemos considerar que houve avanços significativos. Entretanto, frente à realidade desse atendimento no país, esses ganhos são relativizados, principalmente quando constatamos os seus limites em relação à destinação de recursos financeiros para a área.
De toda forma, é fundamental que se dê continuidade à participação dos vários setores envolvidos no processo de luta pela democratização da Educação Infantil no que se refere à regulamentação da Lei pelos órgãos normativos dos sistemas de ensino e à sua concretização, bem como em direção a novas conquistas.
Temos um longo percurso pela frente...
Discutindo o Programa da Escola Plural
no âmbito da Educação Infantil
Sara Mourão Monteiro
Quando fui convidada para falar sobre a Programa Escola Plural para professores e educadores de Educação Infantil2, me veio à lembrança o meu percurso profissional como docente. Comecei a trabalhar com crianças da pré-escola, onde as atividades pedagógicas desenvolvidas tinham como referência o mundo
infantil, a fala das crianças e a intenção de promover o desenvolvimento cognitivo, afetivo e social das crianças. Foi na pré-escola que pude dar início ao meu conhecimento de escola como educadora. No entanto, quando ingressei no ensino fundamental, como professora, encontrei uma outra realidade de
escola que não se assemelhava à representação que eu havia construído nos meus primeiros anos de experiência docente. Na escola de Ensino Fundamental, encontrei alunos com dificuldades de aprendizagem, um programa de conteúdos a ser vencido por mim e pelos alunos em um tempo extremamente irreal, atividades já determinadas em um livro didático que muitas vezes não correspondiam à necessidade e à vivência dos alunos e, ainda, uma maneira de ser da escola que punha as crianças sentadas em carteiras enfileiradas, uma atrás da outra, onde a regra era a professora falar e o aluno ouvir. A professora dar uma prova e o aluno receber sua nota.
Em meio a essa realidade, a sensação que experimentei foi a de um estranhamento desconfortante de um lugar natural para outros profissionais da comunidade escolar. Se tivesse iniciado minha experiência docente no ensino fundamental e não na pré-escola, talvez aquela realidade fosse nova, mas não estranha. Porém, para mim, era muito mais estranha do que nova. Essa situação me levou a concluir, naquela época, que seria muito bom que nunca tentassem discutir propostas para a pré-escola a partir de propostas pedagógicas para o ensino fundamental.
Hoje estou aqui para falar de uma proposta gestada e construída no ensino fundamental para educadores da Educação Infantil. O que dizer disso? Que proposta é essa, que me autoriza discuti-la num encontro como esse? É sobre isso que pretendo discutir daqui para frente.
O Programa Escola Plural está situada num contexto histórico de movimentos pedagógicos que procuram refletir sobre os princípios e a função da educação escolar. Por isso ela nos possibilita uma redefinição de valores pedagógicos e conceitos sobre a própria escola enquanto instituição de direito da comunidade à
educação. Para isso, a Proposta dá ênfase aos aspectos da formação do aluno enquanto sujeito de cultura.
Em primeiro lugar, porque reconhece o aluno no status de sujeito que opera e pensa. Em segundo lugar, porque vincula a sua ação à representação de mundo que constitui sua cultura. Ou seja, nossos alunos, sejam eles crianças, adolescentes ou adultos, estão em processo de compreensão do mundo em que
vivemos, construindo dessa maneira seus valores e conhecimentos. Nesse processo de construção, a escola representa para eles o espaço e o tempo em que se vivencia um, entre muitos, dos processos de ensino-aprendizagem, que exercem influência nessa construção da representação de mundo. Assim sendo, a
escola plural propõe uma estrutura escolar que respeita alguns princípios da formação humana: a idade de formação do aluno, o tempo necessário para a construção de conceitos e para a manifestação dos diferentes ritmos de aprendizagens, a ação coletiva do trabalho pedagógico e, ainda, o aspecto social da aprendizagem de saberes científicos, cotidianos e estéticos que constituem as informações necessárias à construção da representação de mundo pelos sujeitos que estão em constante formação. Cada um desses princípios se materializa na estrutura de ciclo de formação que determina um tipo de organização do trabalho pedagógico dos professores e alunos e traz como conseqüência a necessidade de se refletir mais cuidadosamente velhos problemas da educação. Por exemplo, a velha questão conhecida do fracasso escolar: a reprovação nos primeiros anos de escolarização no processo de alfabetização. Essa questão tem sido abordada de diferentes maneiras dependendo do enfoque que se quer dar à analise do problema. O certo é que problemas como esse resumem de fato boa parte da problemática que nós, educadores, enfrentamos em toda nossa prática por uma escola mais democrática: as dimensões do ensinar e do aprender.
O Programa sEscola Plural analisa o processo de ensino-aprendizagem sob quatro aspectos que o constituem: a interação entre os alunos, entre alunos e professores, entre alunos e conhecimento; a organização do trabalho pedagógico; as atividades que levam à construção de conhecimento e, por fim, os conhecimentos a serem construídos no processo escolar. Trata-se de compreender o currículo da escola de forma mais ampla, onde conteúdo está associado à metodologia da ação de aprender.
Sobre o primeiro aspecto, considera-se a interação com um fator que propicia a aprendizagem porque é através dela que temos condição de confrontar e ampliar nossas hipóteses sobre o conhecimento que estamos construindo. É também através da interação que o outro (o professor e o colega) se torna um mediador do processo de aprendizagem. Ou seja, contar com a colaboração do colega ou do professor na realização de tarefas pedagógicas significa o verdadeiro exercício do aprender. Perguntas do tipo:
Que significado tem a palavra interação para nós professores?
Como os alunos se interagem?
São as novas indagações surgidas a partir dos esforços dos professores para implementar essas idéias na prática docente. Estamos construindo assim, como postulamos para o processo do aluno, o conceito de interação na educação. Passando a observar e refletir a maneira de trabalhar em grupo dos alunos, descobrimos que toda tarefa quando proposta para a realização coletiva, exige um compartilhar de idéias e valores que na maioria das vezes se materializa numa negociação de regras de funcionamento do trabalho, numa elaboração participativa do trabalho e no confronto direto de opiniões e saberes que os alunos trazem de suas experiências cotidianas. Por tudo isso é que queremos formar sujeitos que saibam ouvir, expor suas idéias e sabiamente conviver com diversidade de idéias em situações cada vez mais coletivas. Pois bem, para que a interação aconteça na sala de aula de fato, é necessário que se tenha uma organização também pedagógica.
Organizar o trabalho pedagógico é uma tarefa do professor e uma habilidade a ser adquirida pelo aluno. Como levar o(a) aluno(a) perceber as diferentes formas de organizar materialmente e operacionalmente o trabalho pedagógico? Compreender, analisar e discutir com os alunos as diferentes organizações de trabalho é uma forma de tomar consciência do próprio processo de ensino-aprendizagem vivenciado pelos professores e pelos alunos. Mas, interagir e organizar que tipo de atividade?
Que atividades favorecem a construção de conceitos pelo aluno?
Que definições metodológicas de ensino-aprendizagem devem ser implementadas em sala de aula? Essas perguntas se justificam porque não há metodologia de ensino que possa estar desvinculada de uma concepção de aprendizagem. Não podemos nos esquecer que o processo ensino-aprendizagem é como uma moeda de dois lados.Como pensar o ato de ensinar desvinculado do ato de aprender?
Como desvincular o professor do aluno ou o aluno do professor?
Voltemos às atividades que podem favorecer a construção de conhecimentos. Ter acesso aos conhecimentos culturalmente produzidos é uma questão política que a escola tem assumido por muitas décadas de existência.
Sabemos que as informações existentes nos conhecimentos já acumulados acerca do que estamos aprendendo são fundamentais para que possamos confrontar nossas hipóteses, porque, incorporando novas informações, podemos modificar nossas hipóteses e formular novas a partir da compreensão cada vez mais complexa do objeto de conhecimento. No entanto, é preciso ampliar nossa representação do próprio conteúdo que é veiculado na escola e da forma como o conhecimento é socialmente produzido. Quando compreendemos esses aspectos do conteúdo escolar, passamos a reconhecer e a utilizar outras fontes de informação. Dessa forma, identificar e consultar as diversas fontes de informação se configuram como atividades que o aluno precisa desenvolver em sua escolarização. O meio em que é veiculada uma certa informação determina a
relação que o sujeito estabelece com o conhecimento em construção. Para exemplificar uma das possíveis variantes desse meio, podemos citar o tipo de linguagem utilizada por diferentes fontes de informação. O aluno opera, em sua relação com o mundo com todas as formas de linguagem. Há uma articulação de várias linguagens que constituem o universo simbólico desse aluno: a música, as imagens, os gestos e expressões corporais. No entanto, a escola privilegia apenas a linguagem verbal em sua forma de abordar os conhecimentos.
Há ainda os procedimentos de observação e registro que o aprendiz deve incorporar na experiência escolar. Esses procedimentos devem ser incorporados com a função de subsidiar a análise e a reflexão do aprendiz sobre o objeto de conhecimento e sobre seu processo de aprendizagem. Quanto à observação, devemos estar atentos às variáveis desse procedimento para podermos planejá-la junto aos alunos. O que vamos observar determina o como vamos observar e com que instrumentos. Por exemplo, observar um fenômeno da natureza é diferente de observarmos um fato histórico ou mesmo um sistema de escrita. Além disso, numa observação, o que é percebido por uns pode não ser para outros. Por isso são importantes as trocas e as discussões coletivas a partir do registro das observações. Os registros devem variar de acordo com a intenção e as condições de produção da atividade. Cada tipo de registro (o vídeo, a gravação, a fotografia, o relatório) possibilita captar diferentes ângulos do objeto ou da situação observada. Vinculado a outras intenções, os registros também permitem uma reconstrução de processos vivenciados na escola.
Esses procedimentos terão algum sentido para o aluno quando ele estiver motivado para isso. Ou seja, o aluno terá que ter algum motivo para realizar tais procedimentos. Ter motivo, ter a intenção, ter objetivo claro para tal. Muitos professores relacionam a questão da motivação ao interesse do aluno e identificam a dificuldade de terem clareza de qual é o interesse do aluno. Por outro lado, o entendimento do que seja o interesse da criança, para nós professores, passa muitas vezes pelo o que ele quer aprender, pelo que ele quer discutir. Nos esquecemos, dessa forma, que a questão do interesse é ao mesmo tempo uma questão subjetiva e uma questão social. Deixar que a criança fale de suas experiências coditianas nos permite descobrir, no âmbito da representação subjetiva da criança, o seu mundo real com os conflitos que enfrentam diariamente e as estratégias de enfrentamentos utilizadas por eles na resolução desses conflitos. Nesse momento a criança tem oportunidade de tomar um distanciamento da sua realidade e por isso mesmo tratá-la no campo da representação, problematizando-a. A problematização é uma estratégia natural do processo de compreensão do mundo pelas crianças. É muito comum encontrarmos crianças menores formulando perguntas de todo tipo sobre vários assuntos. A capacidade de problematizar precisa ser aprimorada no processo de escolarização.
Essa intenção pode ser identificada na postura pedagógica, pretendida pela Escola Plural, que possibilita ao aluno um reconhecimento e uma definição das finalidades das aprendizagens que vai realizar na escola. Essa postura está baseada no desenvolvimento da capacidade do aluno para formular questões sobre o objeto de
conhecimento. Quais são as questões dos alunos e como elas são formuladas contribuem para o estabelecimento dos motivos e conseqüentemente para a ativação da motivação dos alunos.
Enfim, construir conhecimentos não é um processo espontâneo nem linear. São muitos os aspectos que poderíamos abordar ao nos propor discutir o processo de construção do conhecimento. Gostaria de abordar apenas mais um. Aquele que Paulo Freire perseguiu em todos os seus discursos elaborados a partir de sua
prática na educação: a identidade do sujeito. Paulo Freire estabeleceu, com muita propriedade, o princípio de que há um vínculo muito grande entre o conhecimento que o professor se propõe a ensinar e a identidade do aprendiz. Esse é um princípio que também caracteriza, como falei anteriormente, o Programa Escola
Plural. O aluno é um sujeito de cultura inserido num contexto social assim como o professor também o é. O encontro desses dois sujeitos no espaço físico e temporal da escola faz do processo ensino-aprendizagem um processo formador e transformador do ser humano.
Por fim gostaria de voltar à questão que coloquei ao me dirigir a vocês através desse texto: qual relação pode haver entre uma proposta como essa e a especificidade da Educação Infantil? As discussões travadas no Ensino Fundamental e na Educação Infantil têm suas especificidades, entre outras, no que diz respeito aos conteúdos escolares e à idade de desenvolvimento dos seus alunos. No entanto, as dimensões da formação humana a serem tomadas como referência para uma proposta político-pedagógica são as mesmas para os vários segmentos da educação. É assim que entendo essa relação. Para mim, o Programa Escola Plural está mais relacionada a uma postura educativa do que a uma proposta de novas alternativas para o Ensino Fundamental. Poderia, então, dizer que o Programa Escola Plural está para a Educação assim como a Educação está para o adulto, para o jovem, para a criança e para o infantil. Ou melhor, a Escola Plural está para a Educação, assim como a Educação está para a formação do sujeito no momento de sua infância.
Educação Infantil, Educar e Cuidar
e a Atuação Profissional
Fúlvia Rosemberg
Vou tratar de algumas questões que relacionam os objetivos da educação infantil e a atuação profissional - melhor dizendo, da profissional - que lida diretamente com a criança, seja ela denominada professora (quando trabalha na pré-escola), seja ela denominada educadora (quando trabalha na creche).
Relembro, inicialmente, aquilo que foi outorgado pela Constituição Federal de 1988 e que nós, militantes da melhoria da educação infantil no Brasil, consideramos como grande conquista: a educação infantil é dever do Estado e direito da criança pequena, ou seja, daquela que tem menos de 7 anos (idade em que se inicia, constitucionalmente, a educação obrigatória, também denominada compulsória). É muito importante termos bem claro que a educação infantil é um direito da criança, mas não é obrigatória. A família tem o direito de optar por colocar, ou não, a criança com menos de 7 anos em equipamentos educacionais. a educação infantil é, também, um direito que a família tem de contar com equipamentos com os quais compartilhe o atendimento de seu filho(a).
Tanto a faixa etária da criança (0 a 6 anos de idade), quanto esta dupla vinculação (direito da criança e da família), impõem uma especificidade aos objetivos da educação infantil, que devem ser sempre, sempre reinfatizados: a educação infantil tem por objetivo educar e cuidar de crianças de 0 a 6 anos de idade. Considero que, no Brasil, uma das melhores e mais completas reflexões sobre este duplo objetivo da educação infantil - educar e cuidar - encontra-se no texto de autoria de Maria Malta Campos Educar e Cuidar: questões sobre o perfil do profissional de educação infantil, que integra a coletânea Por uma política de formação do profissional de educação infantil, publicada pelo MEC/COEDI em 1994. Esta coletânea é o resultado de seminário realizado em BeloHorizonte, e cuja leitura recomendo.
Pois bem, Maria Malta Campos (1994) assinala como a concepção contemporânea de cuidado inclui todas aquelas "atividades ligadas à proteção e apoio necessários ao cotidiano de qualquer criança: alimentar, lavar, trocar, curar, proteger, consolar (...) todas fazendo parte integrante do que chamamos 'educar' (...). Esta concepção torna mais fácil a superação da dicotomia entre o que se costuma chamar de 'assistência' e educação. Com efeito, não só todos esses aspectos são recuperados e reintegrados aos objetivos educacionais, como também deixam de ser considerados como exclusivamente necessários à parcela mais pobre da população infantil, e de ser contemplados apenas para as crianças menores de 2 a 3 anos de idade" (Campos, 1994, p. 35).
Quando introduzimos o objetivo de cuidado, entendido como proteção e apoio, estamos pensando em um ambiente educacional onde atuem profissionais - educadores e professores - capazes de oferecê-lo. Estou pensando, em primeiro lugar, em profissionais que possam ser eleitos pelas crianças como adultos
significativos com quem possam interagir, conectar afetivamente, além dos adultos significativos da família. Nós, adultos, nos garantimos ligações afetivas significativas em diferentes contextos sociais. Nós não consideramos que as nossa ligações afetivas na família sejam suficientes para a diversidade de nossos
desejos e necessidades. Nós nos permitimos ligações afetivas profundas com outras pessoas de nossa idade, mais velhas, mais jovens, seja nos campos de trabalho, das amizades, das relações sociais mais amplas, nos espaços escolares. O que significam essas outras relações afetivas mais amplas que nós temos ?
Entre outras coisas, em situações de crise que nos desafiam enquanto ser humano, nós temos um apoio. Quando somos adolescentes ou adultas em situações de grande tensão, de sofrimento, muitas vezes vamos procurar nossos
amigos mais privilegiados, aquele ombro que pode nos dar proteção, pode nos oferecer cuidado. Esta possibilidade de estabelecer vínculos significativos para a criança pequena, da forma como a sociedade é organizada, é menos possível. A criança não tem autonomia. Sua locomoção, suas escolhas são quase sempre determinadas ou orientadas pelos adultos familiares.
Considero essa função dos equipamentos de educação infantil, de oferecer possibilidades de relações humanas significativas no plano afetivo para a criança, muito importante, e nem sempre considerada. Para que isso possa ocorrer, o equipamento de educação infantil deve ser concebido como uma instituição que
eduque e cuide, que saia do modelo escolar empobrecido, formador exclusivamente do intelecto, que é, também, uma deformação do significado da própria escola para as pessoas maiores. É óbvio que, para que o educador de creche ou o professor de pré-escola possa desempenhar essa função é necessário dispor-se de uma ótima formação. É evidente, também, ser necessário dispor de espaços adequados, que tenham materiais disponíveis. É evidente que se necessita de supervisão e orientação. Não é naturalmente que se aprende a educar e cuidar de crianças pequenas em grupo oferecendo-lhes um atendimento de qualidade.
Para implantar este modelo de educação infantil que educa e cuida devemos, pois, afastar-nos de duas concepções inadequadas: a concepção que educar é apenas instruir e alimentar a cabeça através de lições, ou ensinamentos das disciplinas; e que cuidar é um comportamento que as mulheres desenvolvem naturalmente em suas casas. O que estou querendo afirmar é que cuidar e educar crianças pequenas em instituições coletivas é uma habilidade profissional que necessita ser aprendida e de condições de trabalho adequadas para se expressar. O modelo de que a educadora infantil é uma substituta materna acaba, de certa forma, justificando o poder público a não investir nessa área, historicamente, porque o poder público e o restante da sociedade investem em educação, tanto mais quanto mais velho for o cidadão.
E com a desculpa de que basta ser mulher para cuidar de criança pequena, de que nós todas fomos socializadas para exercer essa função, ou seja, quando se desqualifica e desprofissionaliza o cuidado integrado à educação, muitas vezes quando se tem a formação em magistério, tem-se uma imensa dificuldade de valorizar o cuidado, de se escapar do modelo de escolaridade instrucional, porque imagina-se que o cuidar é função materna, ou, o que é muito comum, de empregada doméstica. No Brasil ainda persiste a concepção de que quem cuida do corpo de criança pequena é a mãe ou a empregada doméstica, a babá. Comete-se este equívoco, trazendo para o campo institucional essa função do cuidar e educar com os significados que recebem no espaço doméstico. Ora, aqui, a educação infantil se processa em outra instituição, com outras características, apesar de se estar
pensando numa única criança: aquela que vive em casa e que vive na creche e pré-escola. Cuidar e educar crianças pequenas em instituições coletivas é uma profissão. Como também necessita formação prévia (que contemple conhecimentos sobre este duplo objetivo), formação em serviço (principalmente através de
cursos e supervisão), espaço e instrumentos de trabalho adequados, remuneração condizente com a importância social do trabalho. O dia que as educadoras e professoras tiverem a consciência clara de que a creche e a pré-escola são espaços de educação e cuidado da criança, mas, também espaço seu de trabalho,
talvez sejam mais vigorosas em suas reivindicações pela melhoria da qualidade do atendimento oferecido à criança. Temos direito a espaços confortáveis, bem como a livros, brinquedos, equipamentos não só para beneficiar a criança, mas também como instrumento de trabalho enquanto profissional.
Se não tenho livros infantis na pré-escola, se não disponho de play-ground com bom equipamento para as crianças, isso tudo vai redundar em sobre esforço meu enquanto trabalhadora. Porque isso é instrumento de mediação, é ferramenta para a execução do meu trabalho. São componentes que também me auxiliam (e muito) interagir com as crianças. Ora, muitas vezes, deixa-se de incorporar nas pautas de negociação coletiva questões diretamente vinculadas ao exercício à qualidade do exercício profissional, tais como formação, supervisão, especialização. Estas necessidades e conquistas não são reivindicação exclusivamente para a criança. O meu trabalho é facilitado se eu disponho desse tipo de retaguarda, de infra-estrutura, de apoio. Isso é importante no plano político. Nós, no Brasil, ainda não conseguimos incorporar nas nossas reivindicações e negociações de trabalhadores, principalmente quando somos trabalhadores da educação, aspectos diretamente relacionados à melhoria da qualidade do serviço, como se isso não fosse reivindicação profissional, como se a reivindicação profissional se orientasse somente para o salário, a carga horária etc.
Formação em serviço, supervisão, materiais pedagógicos, como brinquedo, livro, são instrumentos, ferramentas de trabalho para o professor, para a professora, para o educador de creche. Destaco e sintetizo agora os pontos que me parecem fundamentais nesta discussão.
Primeiro ponto. Não assumir que o educar e cuidar seja uma necessidade exclusiva da criança pequena ou uma necessidade exclusiva da criança pequena de baixa renda, e que toda atividade de cuidado da criança deveria ficar sob responsabilidade da família ou daqueles profissionais que trabalham em funções
subalternas, ou que sejam atividades menos dignas. É importantíssimo reconceituar o cuidado. É importantíssimo reconceituar o significado das necessidades de cuidado de uma criança que, durante um período de sua vida, de seu dia, está sob nossa responsabilidade. É fundamental não se fazer mais esse corte esquizofrênico, entre a cabeça e o corpo. Nós adultos não fazemos isso para nós, e procuramos integrar, em nosso cotidiano, o cuidado para outras atividades. Logo teremos intervalo, para um café, um repouso. O cuidado aqui não está integrado a essa nossa atividade intelectual ? Não se pensou no conforto das cadeiras, claridade da sala, arejamento do ambiente? Isto tudo não é cuidado ?
Segundo ponto. Não basta boa vontade para que uma instituição que cuide e eduque a criança com qualidade, seja implantada na prática. É necessário, também, organização, mobilização, movimentação política nos vários níveis, inclusive no nível das organizações profissionais, trazendo para dentro delas
questões além das reivindicações específicas, para que ultrapassemos os níveis de qualidade precária que conhecemos atualmente. Hoje, em São Paulo, na rede municipal de creches, trabalhar com criança pequena é considerado um trabalho penoso. Isto, entre aspas, foi uma "conquista da categoria", para que ocorresse
aumento no salário. Mas isso, essa"conquista" é inadequada quando se pensa na transformação dessa atividade ou prestação de serviço. Foi um ajuste entre a prefeitura e a mobilização das educadoras de creche, para ter esse aumento. Quem é que sai perdendo ? É lógico, as educadoras tiveram um aumento salarial. Mas isso é um equívoco político, quando a gente pensa no que vem sendo a história dessa profissão de educar crianças pequenas. Ao invés de aumento de salário pela valorização do trabalho, ele decorreu da desvalorização do usuário do serviço. A sugestão não é não-reivindicar aumento de salário. Ao contrário, é
revalorizar o trabalho e não estigmatizar a profissão.
Isto me leva ao terceiro ponto. Vivemos um momento de profissionalização dessa função, seja do educador, seja do professor. Pois bem: um dos componentes que ainda falta para efetiva profissionalização dos professores, é um código de ética. A profissão do magistério difere de outras profissões já estabelecidas. Ela tem um estatuto que protege o trabalhador, mas não tem um código de ética que proteja o usuário de seus serviços. É necessário que a gente passe a enxergar que na ponta do serviço, na ponta de lá, tem alguém que está usando meus serviços profissionais, está usando um espaço de trabalho que nem sempre eu tenho
consciência que o é.
Gostaria, por último, de trazer as contribuições de Robert Myers que levanta sete desdobramentos do significado de cuidar de crianças, em contexto familiar ou institucional. Quais seriam as ações básicas, mínimas de cuidado para com uma criança pequena. Vou listá-las e instigar que se pense o quanto concorda-se, ou não, que a educação infantil, a creche e a pré-escola (esta também), devem cobri-las e, se a resposta for afirmativa, o quanto se estaria respondendo a estas necessidades infantis.
Tornar-se Humano
Maria Clotilde Rossetti Ferreira
PESSOAS SÃO PESSOAS ATRAVÉS
DE OUTRAS PESSOAS :
UBUNTU UNGAMNTU NGANYE ABANTU
(ditado xhosa - língua materna de Nelson Mandela)
Ser único dentre as várias espécies animais, o animal humano distingue-se, dentre outras coisas, por: ser capaz de usar e criar instrumentos, que lhe permitem transformar e mesmo destruir a natureza; ser simbólico, capaz de linguagem e raciocínio, os quais transformam suas relações com o mundo e com os outros homens; ser histórico, capaz de criar história, de perceber passado, presente e futuro, de ter planos e projetos.
O que fez e faz do ser humano esse animal especial dentre outras espécies animais? O que o diferencia dos demais primatas? O que caracteriza o tornar-se humano? Este é o tema que nos propomos discutir, focalizando particularmente nossas investigações a respeito do processo de integração dos bebês e suas
famílias ao novo contexto da creche, no período em que começam a frequentá-la (Rossetti-Ferreira, Amorim, Vitória, 1994). Analisaremos também um outro evento, objeto de vários noticiários e crônicas recentes, qual seja, a experiência com clonagem de ovelhas, com o objetivo de discutir a possibilidade de, através da clonagem, criar réplicas de uma pessoa humana.
As respostas às perguntas acima variam conforme é analisado o "tornar-se humano". Buscaremos nesta apresentação explicitar nossa visão sobre o processo de desenvolvimento humano, fundamentada em uma concepção sócio-interacionista construtivista de desenvolvimento, cuja essência está contida na epígrafe acima: "Pessoas são pessoas através de outras pessoas".
Com relação à ovelha recentemente clonada, parece não haver grandes dúvidas de que, sendo a base genética idêntica, Dolly se tornará uma réplica da matriz. Nessa espécie, há um certo consenso de que as características do animal são basicamente definidas por sua carga genética. Estudos mais cuidadosos sobre
as características individuais de Dolly, cujo desenvolvimento é foco da atenção de cientistas e da imprensa em geral, poderão entretanto evidenciar diferenças interessantes, devidas às condições ambientais físicas e/ou sociais diversas em que vai se dar seu desenvolvimento. Diferenças na alimentação, nas formas de
confinamento, nas oportunidades de exploração, experiências e convívio com outros animais ou com pessoas etc. A maioria das características físicas serão idênticas às da ovelha matriz, porém a maneira de se relacionar, de comportar-se dessa ovelha será provavelmente bem diversa, como resultado desse contexto
diferenciado de desenvolvimento. Contudo, na criação de ovelhas, aliás uma prática própria e exclusiva do animal humano, os parâmetros que mais interessam são os físicos: peso, pêlo, capacidade reprodutiva, tornando-se assim indicadores mais relevantes do processo de clonagem.
A clonagem de um ser humano, espécie animal que evoluiu como biologicamente social, cria questões bem diversas. Deixando de lado o debate ético, aliás extremamente importante, procuraremos analisar o processo de "tornar-se humano", cujas características específicas e únicas diferenciam o homem das demais espécies animais, mesmo primatas. Todo recém-nascido humano é imaturo e incompleto do ponto de vista motor, o que o torna extremamente
dependente de outro ser humano. Seu acesso ao mundo e sua sobrevivência dependem da mediação de outros membros mais competentes da espécie. Por outro lado, nasce com uma organização comportamental e uma rica expressividade, que favorecem seu contato emocional e seu diálogo com outros seres humanos. Esses parceiros inserem o bebê em um mundo semiótico próprio, organizado conforme as representações e expectativas que se tem sobre aquela criança, sobre seu desenvolvimento e sobre seu próprio papel com relação a ela, representações essas adquiridas em suas experiências de vida em um meio sócio-histórico específico. Não apenas o bebê, mas também seus parceiros estão envolvidos e são constituídos nesse jogo de significações, definido fundamentalmente pelo papel, posição ou perspectiva assumida ou atribuída a cada sujeito nas ações e interações que ocorrem em um determinado contexto. Portanto, a cada momento e em cada situação, o sujeito humano está imerso em uma rede (malha) de significações constituída por um conjunto de fatores físicos, sociais, ideológicos e simbólicos próprios daquela cultura e grupo social.
Em nossos estudos, por exemplo, temos observado que, ao levar seu bebê pela primeira vez à creche, a mãe é invadida/capturada por toda uma malha de significações construída no passado e evocada por elementos presentes, sejam eles internos, pessoais ou externos, físicos ou sociais: estado físico, representações, emoções, gestos, o novo contexto com salas, objetos, pessoas adultas e crianças novas, a aparência, atitude ou fala da educadora, a saúde, o choro ou sorriso do filho. Essa malha complexa estrutura de determinada forma o fluxo de comportamentos da mãe, ao mesmo tempo em que a faz recortar e interpretar de certa maneira o contexto e as ações e interações dos outros, inclusive do próprio filho(a). Conforme o momento, o contexto e os personagens, certo conjunto de fatores, adquirem maior relevo na emergência de novos significados. Assim uma boa organização do berçário, em termos de espaço, objetos, rotinas, favorecendo as ações e interações dos adultos e crianças, em um ambiente afetivo e acolhedor, evoca na mãe uma sensação boa e possivelmente traz à tona boas percepções com respeito a deixar seu filho na creche. Também quando coloca seu filho no chão e o vê olhar interessadamente para um bebê ao
lado, esticando a mãozinha em sua direção, sorrindo-lhe e vocalizando, a mãe pode sentir-se capturada por uma emoção positiva, que a faz mais alerta para elementos positivos da creche. Mas se já saiu de casa em conflito, ouvindo o discurso de sua própria mãe (avó da criança) dizendo-lhe que "mãe que é mãe não deixa seu filho em creche" e, ao chegar para buscá-lo na creche, encontra o bebê chorando e/ou com febre, destacam-se alguns elementos mais negativos de sua rede de significações, os quais podem ser modificados através de uma conversa com a educadora, de um gesto de apoio do marido, ou agravados através da crítica
da sogra ou do pediatra.
Nesse processo, portanto, vão sendo construídos os conhecimentos, a linguagem e a própria individualidade dos vários parceiros em interação. Mesmo a constituição física de um sujeito, definida a partir da carga genética que herdou, é transformada e atualizada pelas significações que o sujeito e seus parceiros lhe
atribuem, fundamentadas, por sua vez, nas concepções próprias dessa cultura. Essas vivências e significações vão influenciar como e com que o sujeito se alimenta, veste, se arruma, faz exercícios, adota posturas e atitudes, modificando completamente sua aparência física. Em decorrência, eventuais clones de atrizes sairiam bem diferentes da matriz...
Em várias espécies animais a sobrevivência da espécie e do indivíduo dependem, basicamente, do grupo social básico ao qual pertence. Dentre os primatas não humanos estabelecem-se usualmente relações sociais hierarquizadas, onde cada membro tem posições e papéis definidos. Modificações na hierarquia ocorrem
devido a mudanças ocorridas no grupo e/ou no contexto, usualmente através de enfrentamentos e competições entre os membros por posições de domínio. A estrutura e as relações sociais do grupo e da espécie desenvolvem-se, em geral, em função das condições de sobrevivência que tem de enfrentar. O que se pode falar também dos grupos humanos, como magistralmente o fez Antonio Candido em "Parceiros do Rio Bonito", apontando a interdependência entre as relações sociais do grupo e suas condições de vida e produção na região em que viviam, e as transformações daí decorrentes.
Seria então o social e a sociabilidade humana da mesma ordem daquela que se observa em outras espécies animais, respeitadas, é claro, as diferenças próprias de cada espécie?
A resposta seria positiva em várias teorias psicológicas onde predomina uma visão sistêmica-funcionalista de desenvolvimento, a qual analisa a dinâmica das relações sociais através de regulações mútuas, num sistema que busca um equilíbrio no grupo e no contexto, reorganizando-se a cada desequilíbrio. Tal visão é expressa de forma bastante convincente na proposta teórica de Bronfenbrenner (1977). Fundamentada na idéia de fatores de ordem diversa que se interrelacionam numa relação sinérgica, transacional, ela propõe que desiquilíbrios, contradições ou confrontos, que ocorrem no decurso da vida de qualquer pessoa, representariam uma desorganização ou disfunção temporária, a qual tenderia a uma reorganização, de forma a garantir novamente o equilíbrio do sistema. Aproxima-se, assim, da idéia de homeostase. Partindo de uma perspectiva sócio-interacionista construtivista, nossa resposta é NÃO. Que outra ordem de
fatores seria então esta, que torna a sociabilidade humana irredutível àquela observada em animais?
A capacidade simbólica, fruto da evolução da espécie humana, que criou nela uma ruptura, submetendo-a a uma outra ordem de fatores, que transforma a natureza e o orgânico, embora estes mantenham sua influência, por vezes até dominante, sobre os seres humanos. Ao interceptar e mediar as relações do sujeito humano com os outros e com o mundo, o simbólico, em suas diversificadas formas, fragmenta a apreensão direta (sensório-motora, perceptual) dos objetos do mundo, pondo os sentidos a deriva. Um pedaço de pau pode tornar-se uma boneca ou uma espingarda; um aro de metal pode simbolizar uma relação com o outro, um contrato de casamento; um rabisco no papel pode conter uma mensagem extremamente importante. O próprio sujeito pode desdobrar-se em vários outros, fato observado corriqueiramente no jogo de papéis de crianças de 3-4 anos e atingindo níveis incríveis em casos como o de Fernando Pessoa, com seus vários heterônomos!
Uma leitura mais superficial de autores como Vygostsky (1986) tem levado a noção da linguagem e do signo como instrumentos extremamente úteis ao homem, ao abrir-lhe inúmeras e diversas possibilidades de significação, que o tornam senhor e criador do mundo. Omite o outro lado da moeda, o qual aponta para o domínio que o simbólico e a linguagem exercem sobre o homem, tornando-o escravo das significações que o capturam e impregnam, das quais não consegue fugir. Essas malhas de significações o obrigam a recortar o mundo, os outros e a si próprio de formas determinadas pelas suas próprias experiências nessa cultura, com relação às quais, muitas vezes, ele não tem acesso ou controle, pois permanecem em grande parte inconscientes, como propõe a psicanálise.
Em resumo, propomos que o tornar-se humano é marcado pela imersão permanente do homem em um mundo simbólico e em um processo social contínuo e compulsivo de dar e criar sentidos. Nas interações com os outros e com o mundo, em um determinado momento e contexto sócio-histórico, o homem/a
mulher constrói seus significados, suas relações e a si próprio(a) enquanto sujeito. Suas relações e seu acesso ao mundo são, pois, interceptados pelo outro da linguagem, imersos que estão em sua malha de significações. É a partir dessa malha que os captura, que os outros interpretam a criança desde antes do
nascimento, lhe atribuem determinados papéis, têm para com ele/a determinadas expectativas, constróem para ele/a determinados contextos de desenvolvimento. Dessa maneira a constituem para o mundo assim como constituem o mundo para ela. Ademais, concebemos o confronto e o conflito como centrais e constitutivos da pessoa humana, criticando e opondo-nos à idéia funcionalista/sistêmica de um todo harmoniosamente integrado, que se desequilibra por uma disfunção,
compensada de forma que uma nova harmonia seja atingida. Essa criança e, mais
tarde, este adulto, inserido nos mais diferentes ambientes, aravés da interação com parceiros diversos, vai ter um mundo à sua volta organizado por regras e códigos simbólicos, diretamente ligados a um determinado momento e contexto sócio-histórico e aos recursos de que dispõe. Torna-se assim uma pessoa que reflete a época histórica e o grupo social em que vive, embora nesse processo construa também suas características individuais e únicas.
Psicogenética e Educação Infantil
Heloysa Dantas de Sousa Pinto
Educação adequada é aquela que atende às necessidades do desenvolvimento. Para isso é preciso entendê-las, saber quais são em cada momento. Entender, para atender, estar sensível, para poder ser solícito. Torna-se óbvia a utilidade de uma ferramenta teórica capaz de identificar as sucessivas demandas do desenvolvimento humano. Esse é o propósito da psicogenética Walloniana, que nos coloca diante de uma criança concreta, isto é, corpórea e contextuada, cuja expressividade é preciso aprender a ler, e cujas condições de existência é preciso conhecer. Não se trata de diagnosticá-la ou aplicar-lhe escores e padrões:
conhecê-la utilmente significa saber sua história e suas condições de vida atuais.
É preciso ainda conhecer os mecanismos mais gerais da evolução, compartilhados pelos participantes de um mesmo momento histórico e cultural. A concepção dialética de Henri Wallon entende que a contradição constitui o principal dentre esses mecanismos, força propulsora e modificadora. Negação, oposição, conflito são vistos como constitutivos da pessoa, que é o produto final, sofisticado e precário, do desenvolvimento humano. Uma tensão inerente à relação EU/OUTRO é vista como indispensável à diferenciação pessoal, à demarcação dos limites do EU.
A aceitação dessa tese obriga o profissional da educação a não apenas aceitar a inevitabilidade do conflito e, por conseguinte, aprender a administrá-lo, mas também a distingui-lo do conflito disfuncional. O "bom" e o "mal" conflito, o útil e o inútil. O necessário e o desnecessário, talvez identificáveis pelo caráter não-automatizado do primeiro, pelo resíduo de mudança que deixa nos seus dois pólos, enfim, pela tonalidade afetiva em que se processa a "negociação". A psicogenética Walloniana admite que a contradição é permanente, mas tem dois momentos agudos correspondentes as duas grandes crises pessoais, a dos três anos e a da puberdade, que assinalariam mudanças de nível na consciência de si, novos planos na elaboração do EU. Seria possível descrever três grandes etapas na diferenciação da pessoa, a partir da simbiose original, do estado de sincretismo orgânico e do estado psicológico que marca o início da vida humana. O primeiro poderia ser denominado EU-corporal. Realizado ao longo dos dois primeiros anos, ele efetua um recorte que dá à pessoa a consciência de seus limites físicos e termina com a apropriação da sua imagem especular, daquilo que ela não vê em si mesma, isto é, da visão que os outros têm dela.
Feito este primeiro recorte, a pessoa adquire condições para uma nova consciência de si, agora uma representação, possibilitada pelo surgimento da função simbólica. Um novo EU surgirá, qualificável talvez, de EU-afetivo, marcado pela diferenciação dos desejos. A crise do "eu não quero" tem um caráter cartesiano, metódico formal, nada tem a ver com o conteúdo do que se propõe, mas com a necessidade de diferenciar o próprio querer do querer do outro. É apenas nesse momento que se pode falar com propriedade em EU, uma vez que é por volta do terceiro ano de vida que o pronome surge e, aos poucos, se estabiliza na fala infantil. Durante muitos meses a criança fala de si própria na terceira pessoa, chama-se pelo próprio nome. Diante de sua fotografia ou sua imagem especular, dirá, a princípio, "é o nenê", depois "é a Mariana", depois "é eu", finalmente, "sou eu". Em condições regressivas como tristeza ou dor, dirá ainda "caiu", em vez de "caí". Ecoará o ponto de vista do outro nas perguntas, respondendo "quero" quando ela própria toma a iniciativa do pedido. Em suma, durante muitos meses mistura os dois pontos de vista, o do outro e o próprio, mostrando ao observador cuidadoso a enorme dificuldade de fazer a reversão das perspectivas, da externa para a interna.
O caráter lento e laborioso dessa conquista evidencia a dificuldade da tarefae pode servir de base para sinalizar a função da educação infantil: aprofundar e completar a diferenciação do sujeito, se for aceito, como supõe a teoria em apreço, que ela é condição, não apenas para a interação social articulada, mas também para a diferenciação do objeto, isto é, para o avanço dos processos cognitivos. Sujeito e objeto, afetividade e inteligência,constróem-se reciprocamente, alternando-se em uma trama que se inicia e completa pela afetividade. O primeiro ano de vida é intensamente, dominantemente afetivo; isso ocorrerá de novo na puberdade, mas então a afetividade não será mais a mesma, terá sido profundamente modificada pela evolução da inteligência. A afetividade dos primeros meses é a emoção, isto é, eminentemente orgânica, fugaz, lábil. A estabilidade dos sentimentos, distinguidos pela presença maior de componentes mentais, virá depois com os progressos da representação.
A princípio, porém a vida afetiva, ou mais precisamente emocional, mal se distingue da sensibilidade orgânica. São as sensações viscerais e posturais que definem os estados de bem-estar e, por conseguinte, de alegria, cólera e medo. Incapaz de alterá-los, já que sua motricidade se reduz às respostas puramente reativas dos reflexos ou à ineficácia dos movimentos impulsivos, ela é inteiramente, radicalmente, dependente de outro para a sobrevivência. Neste sentido, é "organicamente social". Seu organismo é, em si mesmo, social: prevê a intervenção do outro para se preservar e completar. A mediação do adulto é, assim, o padrão da espécie, na relação adulto-criança. Ela poderia ultilmente ser transposta para todas as situações de incompetência provisória. E, de fato o é em propostas alfabetizadoras que utiliza o adulto como escriba da criança analfabeta, por exemplo.
A condição de sobrevivência de um ser tão inacabado é a sua capacidade de mobilizar os demais em seu favor. Não é por erro nem acaso que do choro infantil produz um efeito tão devastador sobre o adulto: é preciso, custe o que custar, fazê-lo cessar. É preciso interpretá-lo, entendê-lo, atendê-lo. Esse poder de contágio da manifestação emocional infantil é um padrão básico, profundo, arcaico. Com o desenvolvimento, a possibilidade crescente de ação direta torna menos importante a comunicação emocional. O advento da representação, o acesso à comunicação verbal e, assim, ao conhecimento, produzem o fortalecimento da função racional, que se traduz, em termos neurológicos, pelo amadurecimento do córtex cerebral. As estruturas mais arcaicas, sub-corticais, responsáveis pelas manifestações emocionais infantis, tendem a ficar subordinadas às mais recentes, corticais.
Esse jogo de integração/subordinação que se trava entre o nível cortical e o sub-cortical aparece, no plano da conduta, sob a forma de antagonismo razão/emoção. Essa dualidade não é uma dicotomia. Longe de estarem separadas, as duas geram-se mutuamente, mas reduzem-se uma à outra ao se gerarem. Mobilizada afetivamente a racionalidade, ao ser estimulada, reduz os efeitos da emotividade. Quando não se transfigura em ação eficaz, inteligentemente iluminada, a emoção deteriora a conduta. Ela domina a paisagem do desenvolvimento, não só durante os primeiros meses, mas ao longo de toda a primeira infância. Riso e choro são uma constante e se alternam com uma labilidade que é a própria marca da emoção. Lidar com a emotividade infantil e com a própria, que surge em resposta a ela, é tanto mais difícil quanto o contágio pode ser "circuito perverso", já que ela é, potencialmente, regressiva.
Dar tratamento teórico, conceitual, a questões habitualmente consideradas triviais, analisar e pôr a nu os mecanismos do contágio e da regressão emocional constituem metas para a formação e o treinamento dos educadores da infância. É preciso repensar sua formação, introduzir nela recursos de ordem teatral, incorporar material fílmico, que permita ver e rever, a fim de analisar "a frio" as fugazes nuances das interações afetivas. O que caracteriza a expressão emocional é o fato de ser plástica e cinética: ela se manifesta por movimentos faciais e corporais extremamente rápidos, subliminarmente registrados. Raramente incide sobre eles a atenção consciente. As marcas do tônus da voz são ainda mais despercebidas,soterradas pela dimensão semântica da fala. Aprender a interpretar as indicações contidas em olhares, gestos, respiração, entonação, constitui uma alfabetização indispensável a pesquisadores e educadores.
As características do primeiro ano de vida colocam demandas peculiares, cuja satisfação tende a criar em torno dele um clima doméstico-familiar. Se a educação coletiva, institucional, é capaz de atendê-las satisfatoriamente, é ainda uma questão em aberto, a que mesmo a experiência radical do Kibbutz não respondeu inteiramente. As práticas contemporâneas tendem a adotar soluções capazes de liberar a mão-de-obra feminina, e transformar o aperfeiçoamento de berçário e creches em uma exigência histórica. O efeito disto é a procura de um apoio científico cada vez maior para a sua organização. Na concepção walloriana, o primeiro ano é essencialmente centrípeto, emocional, voltado para o acabamento da embriogênese. A inteligência ainda indiferenciada da afetividade está em seu nível mais elementar, epidérmico. Apenas canais diretos se abrem para a troca afetiva: a qualidade do olhar, as nuances da voz, a maciez do toque. Lentamente, o equipamento para a cognição sensorial e motora do mundo amadurecem: a possibilidade de acompanhar com olhar movimentos complexos, a apreensão em pinça, precisa e eficaz, e a autonomia do deslocamento vertical. Enquanto isto não se dá, a criança, presa ao berço, explora-se a si mesma, descobre seus limites corporais, primeiro os membros superiores e o lado dominante. Diferencia lentamenta a exterioridade; no plano físico, o sapato do pé, a luva da mão. Faltará ainda a apropriação da própria imagem, exteroceptiva, isto é, a inversão da direção da pesquisa. O segundo e o terceiro ano assistirão a esta radicalidade: o interesse ávido no provimento do espaço exterior, pela manipulação dos objetos (que antes só interessavam quando oferecidos por alguém), agora darão a este segundo momento um caráter centrífugo, objetivo, cognitivo sensorialmente, a princípio; simbólico, logo em seguida, com o advento da representação e da linguagem. Às necessidades, que antes eram viscerais e posturais, basicamente agora se acrescentam outras de caráter radicalmente diferente, cuja satisfação requer a preparação de um espaço manipulável. De íntero e proprioceptiva que era, a criança se torna avidamente exteroceptiva: ao prazer dos movimentos passivos (como o embalo) acrescenta-se o prazer dos espetáculos assistidos. Das sensações labirínticas às sensações visuais existe uma enorme evolução. A organização de espaços estimulantes, povoados de objetos culturais capazes de mobilizar práxis e desencadear ações organizadas, se torna crucial: os espaços vazios apenas deixam a motricidade exuberante dos primeiros anos à impulsividade arcaica, à explosão motora que se transforma facilmente em explosão emocional.
A tarefa dos anos finais da Educação Infantil é a da reconstrução do EU em seu novo patamar representativo: realizá-la requererá do adulto a capacidade de aceitar, mas limitar, a confrontação de desempenhar o papel de platéia aprovadora para as manifestações narcísicas dos Eus recém-nascidos, e de modelo a ser imitado. Ele terá que se prestar à dupla função de elemento a ser expulso e incorporado alternativamente. Não se trata aqui de afirmar apenas que o EU vem de fora: ele exige também a exterorização do não-eu, mecanismo inverso e complementar.
A Importância da Literatura na
Educação Infantil
Maria Zélia Versiani Machado
Quando falamos de infância, costumamos, por um processo de identificação, procurar nas gavetas mais bagunçadas da nossa memória emoções, sentimentos, situações para, a partir daí, construir a imagem que fazemos dessa fase da vida. É essa uma operação essencialmente afetiva porque remexe com as experiências passadas individuais. O olhar distanciado torna-se quase impossível, pois não é fácil desprender-nos de nós mesmos. Alguma coisa de nós está lá nas crianças que são hoje nossos alunos. Da mesma forma não há como falar de Literatura Infantil sem que nos transportemos para a nossa experiência com o texto literário na infância, mesmo que essa vivência não tenha se concretizado plenamente, deixando lacunas que hoje, novamente leitores de obras infantis, buscamos preencher. Essa vivência da literatura na infância pode ocorrer de muitas maneiras, e os relatos de leitores nos mostram que o contato com as narrativas orais e escritas ou com a poesia se dá sempre de forma diferenciada de uma pessoa para outra, de um leitor para outro. Esses relatos podem ser encontrados nas próprias narrativas autobiográficas ou nos depoimentos de leitores sobre a sua iniciação com os livros. Bartolomeu Campos Queirós, por exemplo, volta à infância em três de seus livros, e neles revive o contato com as primeiras leituras, feito através da escola:
"Nas aulas de poesia, Dona Maria caprichava. Abria o caderno, e não só lia poemas, mas escrevia fundo em nosso pensamento as idéias mais eternas. Ninguém suspirava, com medo da poesia ir embora: Olavo Bilac, Gabriela Mistral, Alvarenga Peixoto e 'Toc, toc, tamanquinhos'. Outras vezes declamava poemas de um poeta chamado Anônimo. Ele escrevia sobre tudo, mas a professora não falava de onde vinha nem onde tinha nascido. E a poesia ficava mais indecifrável."
Já para o poeta José Paulo Paes, a experiência escolar da literatura deixou marcas, mas essas marcas, ao que parece, não foram muito positivas, adiando o interesse pessoal pela poesia para além da iniciação escolar, como mostra o escritor no bem-humorado relato abaixo:
"O contato com a poesia só se daria dois ou três anos mais tarde, no grupo escolar. E foi um contato inicialmente desastroso. Os autores de compêndios para o ensino da língua portuguesa tinham um faro infalível para escolher sempre o pior, o mais chato e o mais convencional em matéria de versos. Apesar do horror que me causavam - ou quem sabe por causa dele mesmo - guardo até hoje na memória fragmentos de poemas que me obrigavam a ler na escola. Um desses poemas de que me lembro falava de um menino que tinha achado um relógio:
Apesar da mal-sucedida experiência escolar do poeta, no mesmo depoimento, ele reconhece o importante papel da escola no incentivo à leitura de poesia:
"No desenvolvimento desse hábito, a escola tem um papel importantíssimo a cumprir, especialmente num país como o nosso, em que cultura que não seja de massa, primária e rasteira, não merece maior apreço. Se a criança não encontra no lar, como deveria encontrar, o exemplo de adultos que fazem do livro um instrumento de lazer e aprimoramento intelectual, terá de encontrar tal exemplo e estímulo dentro da escola."
José Paulo Paes pressupõe um leitor alfabetizado, cuja prática da leitura de livros deve ser incentivada. Mas em se tratando de uma criança ainda não alfabetizada, qual seria o papel da educação infantil ao colocar em circulação narrativas e poesias que se encontram nos livros?
A iniciação com o texto literário ocorre, na maioria das vezes, antes que a criança ingresse na escola. Narrativas contadas pelos pais ou outra pessoa da família tornam-se parte do mundo infantil e nele encontram um fértil solo de ampliação pela permanente atividade imaginante das crianças. Estruturas narrativas vão sendo internalizadas por elas quando escutam as histórias contadas pelos adultos. Expressões indicadoras do mundo ficcional como, por exemplo, "Era uma vez" ou "e foram felizes para sempre" são para elas ampliadoras de conhecimento, porque possibilitam que se experimente outras vivências, que se
conheça mais os outros e conseqüentemente a si próprio.
A poesia, por sua vez, confunde-se com o jogo de sons, de imagens, de ritmos verificável na cadência da linguagem das mais variadas brincadeiras. Percebe-se, nas brincadeiras mais tradicionais, a facilidade com que se criam rimas, o gosto pelas repetições, as variações rítmicas, a atenção ao jogo polissêmico, ou seja, à exploração dos vários sentidos de uma mesma palavra, entre outros recursos inesgotáveis da linguagem. Como se dá a passagem entre essa literatura ouvida e vivida pela criança e o contato com o livro, ou seja, com o universo das histórias escritas? Qual o sentido da palavra leitura quando falamos da sua prática na faixa de 0 a 6 anos? Sabemos que, principalmente em se tratando dessa fase da vida, seria um contra-senso empregá-la no sentido restrito de decodificação dos sinais negros inscritos nas páginas. Leitura tem, na infância, mais que em outros estágios da aprendizagem, seu sentido ampliado. Sobre a ampliação do sentido de leitura ocorrido nas últimas décadas, Ana Luiza B. Smolka, no texto "A atividade da leitura e o desenvolvimento das crianças", diz o seguinte:
"... estudos e pesquisas em psicologia e lingüística assinalaram a leitura como um processo ativo - de decodificação, de busca e extração de informações de um texto, de reconstrução de sentido, de compreensão (...) em contraposição ou complementação ao enfoque anteriormente restrito às habilidades perceptivas e motoras."
Sobretudo nos primeiros anos da infância, entre o livro e o mundo há uma constante troca simbólica sem fronteiras ou limitações. Quem com elas convive percebe como os usos que a criança faz da linguagem se aproximam de processos poéticos pela capacidade inventiva com que elas vão descobrindo o mundo e construindo sentido para as coisas ao seu redor. No universo da infância, grande peso tem a leitura em voz alta. O que está dentro do livro, essa caixa mágica cheia de palavras, chega até o ouvinte pela mediação da voz do professor. A leitura da história ou da poesia feita por ele é recebida pela criança acrescida das emoções do sujeito-leitor, que lê para ser ouvido, e essa emoção, modulada pela entonação, pelas pausas, pela troca de olhares, pela expressividade, é também responsável pela qualidade da recepção da obra pelo público infantil. Essa mediação entre a criança e a escrita, no entanto, progressivamete vai sendo substituída pelo contato direto da criança com o objeto livro. A materialidade concreta do objeto vai se constituindo como lugar de descobertas e possibilidades. Mesmo sem decodificar os sinais que a página misteriosamente apresenta, através do apelo visual das ilustrações, imaginam-se histórias, criam-se personagens, inventam-se lugares desconhecidos.
Os chamados livros de imagens podem também cumprir o papel de aproximar a criança do livro por prescindirem do texto escrito e apresentarem uma estrutura que permite que o leitor construa um sentido, sugerido pelas figuras em seqüência nas páginas. O leitor infantil, no contato com as imagens, traduz em palavras a compreensão da história que elas buscam articular. Esse pode ser um estágio importante para o posterior envolvimento com a palavra escrita, capaz de estimular a atividade reflexiva e ampliar o horizonte de vivências de quem lê.
Há alguns anos, quando dei aulas no curso de magistério, percebi a resistência de algumas alunas no trabalho com o texto literário infantil. Após a leitura de vários títulos para a seleção de histórias que seriam usadas em uma atividade desenvolvida com alunos da 2ª série do 1º grau, uma dessas alunas comentou: "Mas que bobagem isso de bicho falar!" Eu fiquei pensando sobre a frase, que, na verdade, contrariou um pouco as minhas expectativas no que se refere ao perfil que eu havia construído para as futuras professoras que ali estavam, pois quase todas pareciam estar bem envolvidas com a atividade, e fui imaginando justificativas para tal reação. Talvez essa professora não tivesse tido a oportunidade de experimentar o que o fingimento próprio da ficção (na sua etimologia ficção é 'ato ou efeito de fingir', 'simulação', 'coisa imaginária'), que dá voz a bichos e transfigura o real, pode trazer para o leitor quando ele retorna à sua realidade. Outra hipótese seria: se ela, na infância, experimentou tal prazer, talvez ela tenha se esquecido dessa época em que os bichos falavam, na qual a livre imaginação era uma forma de estar no mundo. Sobre isso, num lindo texto em que trata de "Ética e Leitura", o filósofo e escritor Benedito Nunes fala:
"... da adesão a esse 'mundo de papel', quando retornamos ao real, nossa experiência, ampliada e renovada pela experiência da obra, à luz do que nos revelou, possibilita redescobri-lo, sentindo-o e pensando-o de maneira diferente e nova. A ilusão, a mentira, o fingimento da ficção aclara o real ao desligar-se dele, transfigurando-o; e aclara-o já pelo insight que em nós provocou."
Admitir a possibilidade de ampliação do mundo na linguagem e pela linguagem tem como base uma concepção que pensa a leitura do texto literário na sua função comunicativa, onde se cruzam vida e invenção, realidade e fabulação. Como acontece na experiência daquele leitor menino, lembrada por Drummond nos conhecidos versos:
" (...)Eu sozinho menino entre mangueiras lia a história de Robinson Crusoé, comprida história que não acaba mais (...)"
Uma experiência passada de leitura que se mistura à experiência de vida do menino, nas imagens recuperadas pela voz do eu-lírico, quando compara uma e outra:
"(...) E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé."
Que papel caberia àqueles que atuam na educação infantil no que diz respeito à iniciação ou manutenção do contato com os diversos textos literários que, na estante, não passam de volumes à espera do leitor? Livre de exigências programáticas ou da priorização de conteúdos, a pré-escola ou as creches podem ser o lugar de ampla circulação desses textos. E se isso de fato acontecesse, os ciclos seguintes da escolarização iam colher os bons frutos dessa prática. Não se corre o risco, nessa fase da infância, de se reduzir a experiência com as narrativas e as poesias a questionamentos utilitários, que transformem a dimensão plural da leitura num pretexto para assimilação de conteúdos ou de regras. Iniciado o processo, porque o leitor está sempre em processo, dificilmente o espaço conquistado pela atividade imaginante poderá ser anulado por propostas que limitem a função do literário.
A criança só pode criar uma capa de resistência ao mau uso dos textos literários através do contato com esses textos, inclusive para discernir entre a boa e a má literatura, seja pela voz da professora, pelo manuseio do livro ou pela visualização das imagens que com ela interagem.
Um trecho do livro A história sem fim, de Michael Ende, que se tornou muito conhecido pela sua versão cinematográfica, elucida a atração do leitor infantil pelo livro quando a experiência da leitura é bem sucedida. Na passagem, a personagem criança se sente atraída pelo livro e imagina aquilo que a história que ali dorme pode lhe trazer:
"Bastian olhou para o livro. 'Gostaria de saber', disse para si mesmo, 'o que se passa dentro de um livro quando ele está fechado. É claro que lá dentro só há letras impressas em papel, mas, apesar disso, deve acontecer alguma coisa, porque quando o abro, existe ali uma história completa. Lá dentro há pessoas que ainda não conheço, e toda espécie de aventuras, feitos e combates - e muitas vezes há tempestades no mar, ou alguém vai a países e cidades exóticos. Tudo isso, de algum modo, está dentro do livro. É preciso lê-lo para saber, é claro. Mas antes disso, já está lá dentro. Gostaria de saber como...' E, de repente, sentiu que aquele momento tinha algo de solene. Endireitou-se no assento, pegou o livro, abriu-o na primeira página e começou a ler."
Criar condições para que o aluno chegue ao ponto em que o livro já não é apenas um volume mas um objeto de desejo, como para o personagem acima, pode ser um dos objetivos do trabalho com a literatura na educação infantil. Um objetivo que talvez só se concretize nos ciclos seguintes, porque, em se tratando de leitura, não se pode pensar em retorno imediato. Por ser uma atividade de interação reflexiva, que não se efetiva sem o trabalho do leitor, ela se desenvolve contínua e lentamente, como toda forma de crescimento.
Conto:
O que quer uma ex-princesa
Maria da Graça Rios
Menina.Não pássara, borboleta, peixe ou saci pererê. O corpo um tanto magrelo, as pernas sempre subindo.
Canelas de Sabiá?
Ponho a língua para fora. O espelho me mostra a língua, que é comprida e bate nos dentes.Dentro, a goela está vermelha, com a velha campainha. Admiro mais a bruxa do que a Branca de Neve. Plim!Plim! Um pouco de dor de garganta. Os bichinhos se divertem, devorando as comodinhas. Eis a porta para as funduras. Dizem que é bom bochechar com água morna e bastante sal. Ah! Os micróbios morrem de fome, porque o sal acaba com a festa, levando para o estômago restos de bolo,sorvete,coisas de que me alimento.
Bem feito!
Mais além, é o impossível. Preciso de um mapa dos ossos, os músculos, os intestinos. Como virar-me do avesso para ter a fotografia? A Branca do espelho corre !
Vendo assim, sou a menina. Não me venham com outras histórias, de que "ela"são os cabelos, tão longos e cacheados. Fofoca de idéias curtas, por baixo dos caracóis. Nem sou uma pele fina, que os vendedores de cremes observam com lupas de lobos. Perfumes?
Propagandas que me des-compõem.
Muita gente que ficou grande diz que garota é "uns olhos". Nasce a menina-mulher com um jogo de olhar cigana, sereia, malandra, fera. Contam-se os contos de fadas e as bela-dormecidas. Tem menina com miopias e nem assim vira homem ou lobisomem.
Talvez, depois de crescida, "elazinha" será os seios, dando o leite aos Remos e Rômulos. Isso é assunto para futuros que preferem as mamadeiras. Sutiãs estão sendo queimados e os mamás vão diminuindo. Teatro.
Cena :
_ Um bebê falou para o outro que assim que a enfermeira saísse, iria mostrar
que era fêmea. Quando a enfermeira saiu, puxou a manta e gritou: "Olhe os meus sapatos rosa".(Risos de irmãos. Cai o pano).
"Ela tem pescoço de cisne. A cintura de formiga". Imagine o bicho que dá !
Minha bisavó sofria de asma, por causa da roupa apertada. Aquele troço de "anquinhas". Hoje, a figura é mais reta. Cintura fora de moda. Quadris largos, nem pensar. Todo o povo de calças jeans, camiseta, tênis e meia.
Aí dizem que sou menina por causa do sexo frágil. Uma boneca de louça. Mas na hora do ping-pong, mando os primos para o raio.
Nada de ser "a mais quieta", "comportada e obediente". Danço um rock da pesada, gosto de revista pornô.
E é bom ir avisando que não sei cozinhar um ovo.
E agora é que são elas! O nó cego do xixi assentada, quando os moleques da rua disputam jato à distância.
Riem-se da minha calcinha, porque homem usa calção. Ah, não !
Aí digo que uma donzela não nasce só de sua mãe. O pai faz cinquenta por cento.
Igual ao café com leite: sem jeito de separar.
De novo, o caso do avesso. O sexo para dentro, os grandes lábios sorrindo. "Elementar" prá do espelho.
No fundo, há um certo menino.
Fé menina no masculino. Gente vivendo na carne o que é a terra do planeta. Nem anjo, nem capeta.
Mas voltando ao que é a ...
Expediente:
Infância na Ciranda da Educação
Publicação do Centro de Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação - CAPE/SMED
Prefeito de Belo Horizonte:
Vice-Prefeito:
Secretária Municipal de Educação:
Secretária Adjunta:
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Coordenadora de Educação Infantil da
- CPP/SMED
Conselho Editorial:
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Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica:
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Fotolito e Impressão:
Revista nº 3 - novembro de 1997
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Marcos Vilella Sant'anna
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Tadeu Rodrigo Ribeiro
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Assessoria de Comunicação SMED
Ana Martha Coutinho Moreira
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Mariana Ribeiro
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