Luciana Zenha
Professora da Faculdade de Educação/UEMG Coordenadora de Novas Tecnologias do Colégio Dom Silvério/Marista Membro do NECT/FAE/UEMG
Uma das características mais marcantes de nossa sociedade, neste momento, é a intensificação da circulação de informações, principalmente pelo desenvolvimento de novas tecnologias. Tevê a cabo, vídeo, Internet,CD-ROMs, softwares diversificados são algumas dessas tecnologias que, após o rádio e a televisão, vieram ampliar as possibilidades de acesso à informação, integrando-se aos suportes tradicionais da escrita e, muitas vezes, incorporando-os e transformando-os.
Assume-se, em geral, que essas novas tecnologias contribuíram para uma melhoria da qualidade de vida. Isso parece que realmente aconteceu, mas para poucos: menos de 5% da população mundial tem acesso às novas tecnologias1e às descobertas científicas veiculadas pela Internet. Além disso, o consumo indiscriminado dessas novas tecnologias e de seus recursos para essa parcela aumentou de forma extraordinária as diferenças entre os países. Indivíduos e grupos tendem a ter acesso diferenciado ao desenvolvimento das habilidades envolvidas no uso das novas tecnologias, num mundo em que cada vez mais
os indivíduos e os grupos, mais do que desenvolver e utilizar as tecnologias para adaptar o meio às suas necessidades, têm que desenvolver ou adquirir capacidades e habilidades cada vez mais complexas para entender minimamente seu próprio ambiente. Na atualidade, num mundo em que ainda existe uma alta porcentagem de analfabetismo, já não só é preciso dominar a língua oral e escrita. Para poder tomar uma posição crítica e de valor e não só de consumo indiscriminado, precisa-se entender as chaves das linguagens audiovisuais e informáticas, ter capacidade para saber aprender, critério para selecionar e situar a informação e um mínimo de conhecimento básico para dar-lhe sentido e convertê-la em conhecimento pessoal, social e profissional (SANCHO, 1998: 11).
O processo de distribuição desigual de novas tecnologias torna clara a importância e a necessidade de se procurar entender os seus impactos sobre diferentes aspectos da vida social, em suas dimensões cultural, política, econômica, cognitiva e psicológica, e, como é o caso desta pesquisa, sobre a leitura. Além disso, os novos comportamentos dos leitores diante da tela são pouco estudados no campo de estudos sobre a leitura. De acordo com CHARTIER (1998: 93-94), a literatura a respeito do impacto dessa nova tecnologia e das novas práticas de leitura tende a apresentar pouca articulação e lacunas, uma vez que
(...) é dominada ou pelos discursos técnicos ou pela discussão dos desafios políticos dessas técnicas. A descrição etnológica ou sociológica das práticas continua marginal.
A prática da leitura é considerada uma atividade variável, constituída por um conjunto de práticas e de condições. Essa visão da leitura como algo variável é compartilhada por CHARTIER (1997: 31):
a leitura não é uma invariante antropológica sem historicidade. Os homens e as mulheres ocidentais não leram sempre do mesmo modo. Vários modelos governaram suas práticas, várias revoluções da leitura modificaram os seus gestos e seus hábitos.
Essa variação é condicionada por fatores de ordem individual e social. O ato individual da leitura é dependente, como mostra OLSON (1994), do conjunto de fatores que constituem as situações de leitura: os propósitos e expectativas dos leitores, suas competências ou grau de proficiência, os tipos de textos lidos:
"Ler" é considerado habitualmente um verbo transitivo; quando dizemos que alguém sabe ou não sabe ler, somos obrigados a dizer de que leitura se trata – se programações de corridas de cavalo, e manuais de computação ou textos literários. Além disso, o ato de leitura tem um propósito: o leitor preocupado com as questões de fundo não tem o mesmo critério para a leitura que o leitor preocupado com a forma literária. O que o leitor vê no texto depende do seu nível de competência. Um conhecimento mais amplo permite ao leitor encontrar no texto mais do que encontraria um leitor inexperiente, facultando-lhe ao mesmo tempo excluir os sentidos autorizados do próprio texto.
Cada ato individual da leitura, entretanto, é condicionado por fatores sociais. Os estudos sobre as práticas sociais de leitura (ver especialmente CHARTIER, 1989) vêm descrevendo as alterações sócio-históricas do ato de ler como o resultado das tensões que se estabelecem entre dois grandes conjuntos de fatores: aqueles relacionados aos leitores e às comunidades de interpretação nas quais estão inseridos, de um lado, e aqueles relacionados aos textos e à sua materialidade, de outro lado.
Por comunidades de interpretação (FISH, 1980) compreendem-se as diferentes “identidades dos públicos” (CHARTIER e CAVALLO, 1998: 7), vale dizer, os diferentes modos por meio dos quais diferentes grupos sociais organizam sua relação com o escrito e seus pressupostos e disposições a respeito do ler: “o conjunto de competências, de usos, de códigos, de interesses” (idem, p.7) em torno dos quais se constrói a identidade de um grupo de leitores.
Esse conjunto de competências, usos e disposições de cada comunidade de leitores se realiza no confronto com os textos e sua materialidade e, conseqüentemente, no quadro das possibilidades de leitura geradas por fatores de ordem técnica e material. Estudos vêm mostrando, por exemplo, que as possibilidades de uma leitura predominantemente extensiva (em oposição a práticas de leitura intensiva, organizadas em torno da leitura reiterada de um corpuslimitado de textos) estão em grande parte relacionadas ao surgimento da imprensa. Com efeito,
(...) em meados da década de 1450, só era possível reproduzir um texto copiando-o à mão, e de repente uma nova técnica, baseada nos tipos móveis e na prensa, transfigurou a relação com a cultura escrita. O custo do livro diminuiu, através da distribuição das despesas pela totalidade da tiragem, muito modesta, aliás, entre 1.000 e 1.500 exemplares. Analogamente, o tempo de reprodução do texto é reduzido graças ao trabalho da oficina tipográfica. (CHARTIER, 1998: 7)
Tudo isso, associado a fatores educacionais e políticos, ampliou a oferta de textos e, desse modo, as possibilidades de acesso de determinados grupos à escrita. Estudos vêm mostrando ainda (SAENGER, 1998 e CHARTIER, 1998), também, por exemplo, que é em função das alterações nos suportes da escrita (do volumen para o codex) e da progressiva criação da configuração gráfica da página e de suas saliências textuais (as margens, os parágrafos, títulos e subtítulos e, mais importante, os espaços em branco entre as palavras) que se possibilita o uso mais amplo e contumaz da leitura silenciosa em oposição à oral, a qual, até o início da Idade Média, constituía o modo de ler por excelência:
A introdução de espaços claramente perceptíveis entre cada palavra da frase, inclusive entre as preposições monossilábicas, teve como primeira conseqüência diminuir a necessidade de se ler em voz alta para compreender o texto. Esta nova apresentação textual foi complementada por outra alteração lingüística igualmente significativa: a mudança das convenções sobre a ordem das palavras e sobre o reagrupamento de palavras gramaticalmente ligadas. Tomadas em conjunto, a separação e a nova seqüência das palavras facilitaram a veiculação das idéias, feita agora com precisão e sem ambigüidade – o que era exigido pelas sutilezas da filosofia escolástica. Ambas foram também pré-requisitos para o desenvolvimento da pontuação sintática e da leitura silenciosa rápida que dependia do pronto reconhecimento visual da forma das palavras e da percepção da organização espacial do texto: a oração, a frase, o parágrafo (SAENGER, 1998: 147).
Assim, a leitura resulta – sob uma perspectiva sócio-histórica – tanto dos condicionamentos que regulam as diferentes comunidades de leitores quanto dos condicionamentos de ordem material e textual:
Contra a representação (...) segundo a qual o texto existe em si mesmo, separado de qualquer materialidade, devemos lembrar que não existe texto fora do suporte que permite sua leitura (ou da escuta), fora da circunstância na qual é lido (ou ouvido). Os autores não escrevem livros: escrevem textos que se tornam objetos escritos – manuscritos, gravados, impressos e, hoje, informatizados – manejados de diferentes formas por leitores de carne e osso cujas maneiras de ler variam de acordo com as épocas, os lugares e os ambientes (CHARTIER e CAVALLO, 1998: 9).
Em síntese: a leitura é uma atividade variável. É constituída, como vimos, por um conjunto de práticas e de condições de ordem individual e social. Nos últimos anos, surgiram novos suportes para a escrita – os suportes virtuais2–, dando origem a novas formas de organização textual e a novas configurações visuais da página. Se os modos de ler são dependentes, dentre outros fatores, da materialidade dos textos, quais modificações estariam ocorrendo nas práticas de leitura desenvolvidas em suportes virtuais? Quais seriam as práticas de leitura na Internet? Em que a diagramação e a estrutura da informação nos textos virtuais influenciam os movimentos dos leitores? Reunir subsídios para responder a essas perguntas é o objetivo deste trabalho.
Práticas de leitura sob o impacto de um suporte digital
Por suportes digitais ou virtuais compreendem-se, aqui, as formas de escrita que se apóiam em processos eletrônicos e em linguagens codificadas. Materialmente podem ser gravados em suportes cartonados (cartões perfurados que utilizam um código binário), magnéticos (como os disquetes) ou plásticos (como os CD ROMs e os DVDs). Os instrumentos para a escrita se identificam com um teclado (semelhante às máquinas de escrever), um microfone conectado a um computador (para registro da voz e transcrição por um programa específico) ou um scanner; já os de leitura correspondem à tela, para visualização, à impressora para transformação dos textos virtuais em impressos, alto-falantes, para restituição do som, e pequenas câmaras de filmagem, para digitalização das imagens3.
Que impactos esses novos suportes estariam exercendo sobre a leitura? LÉVY (1999: 21 e 22) questiona a utilização da palavra “impacto” ao se tratar de novas tecnologias, pois seu uso tende a enfatizar suas conseqüências sociais, culturais e econômicas, por exemplo, sem, simultaneamente, enfatizar o fato de que essas tecnologias são também produtos de uma sociedade e de uma cultura. De acordo com ele:
(...) A tecnologia seria algo comparável a um projétil (pedra, obus, míssil?) e a cultura ou a sociedade, a um alvo vivo. Esta metáfora bélica é criticável em vários sentidos. A questão não é tanto avaliar a pertinência estilística de uma figura retórica, mas sim esclarecer o esquema de leitura dos fenômenos – a meu ver, inadequado – que a metáfora do impacto nos revela (LÉVY, 1999: 21).
Tendo em mente essas ressalvas, que transformações ou modificações esse novo produto da cultura – que são os suportes virtuais – estariam trazendo para as práticas de leitura? Que novas possibilidades oferecem aos leitores? Que limitações apresentam para a leitura? Que rupturas e continuidades mantêm em relação aos outros suportes?
Podem ser encontradas, na literatura existente sobre o fenômeno, hipóteses que auxiliam na busca de respostas a essas perguntas. Algumas delas estão relacionadas abaixo e poderão ser discutidas durante o seminário. Você pode pensar sobre elas e desenvolver alguns comentários:
Rolo e tela
Visão em partes e visão do todo
Saliências no suporte digital
Contato e relação com o tempo e com o suporte
Indestrutibilidade
Transposição do texto impresso para o texto eletrônico
Novos mecanismos de escrita e leitura utilizando teclado e voz
APARICI, Roberto & MATILLA, Augustín García. Lectura de imágenes. Madri: Ediciones de la Torre, 1989.
ARAÚJO, Emanuel. A construção do livro: princípios da técnica de editoração. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Instituto Nacional do Livro/Fundação Nacional Pró-Memória, 1986.
BARAJAS, Mário F. Comunicação Global e aprendizagem: usos da Internet nos meios educacionais. In: SANCHO, Juana M. Para uma tecnologia educacional. Trad.Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. p.313-327.
CHARTIER, R. Textos, impressos, leituras. In: A história cultural: entre práticas e representações. Trad. de M. Galhardo. Lisboa: Difel/Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p.121-139.
CHARTIER, Roger (ed.). The culture of print. Princeton: Princeton University Press, 1989.
CHARTIER, Roger (org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1998.
CHARTIER, Roger; CAVALO, Guglielmo. História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad.Carlos Irineu da Costa. São Paulo: 34, 1999.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Trad. Paulo Neves. São Paulo: 34, 1996.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: 34, 1993.
LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva; por uma antropologia do Ciberespaço.Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 1998.
LÉVY, Pierre. Educação e cybercultura. [on-line]. Belo Horizonte: Cátedra de Educação à Distância/FAE/UFMG, 1998. Disponível na Internet em:http://www.fae.ufmg.br/catedra/Artigo3.htm . 15 out 1998. (ver também:http://www.cicv.fr/counal/participantes/levy.html http://www.levirtualduphilosophe/Pierre http://www.portoueb.com.br/Pierre)
LÉVY, Pierre. A “netiqueta” do ciberespaço. Folha de São Paulo, São Paulo, 9 nov.1997. Caderno Mais!, p.3.
SAENGER, Paul. A leitura nos séculos finais da Idade Média. In: CHARTIER, Roger, CAVALO, Guglielmo. História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998.p.147-184.
SANCHO, Juana M. Para uma tecnologia educacional. Trad. Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artes Médicas,1998.
1 BARAJAS, Mário F. Comunicação Global e aprendizagem: usos da Internet nos meios educacionais. In: SANCHO, Juana M. Para uma tecnologia educacional. Trad. Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.p.313-327.
2 "A palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivado, por sua vez de virtus, força, potência. Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência e não em ato. O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado no entanto à concretização efetiva ou formal. A árvore está virtualmente presente na semente." Pierre LÉVY (1996: 15)
3 Ver BIBLIOTHÈQUE NATIONALE DE FRANCE (1998). São utilizados ainda outros instrumentos, com múltiplas funções, como o mouse e as canetas magnéticas, por exemplo.