Titulo:
Aurotr(es):
Ciclos de Formação na Escola Plural
Agnela da Silva Giusta, Maria Angela Moraes Euclides, Débora Aniceta de Mello Ramón

Texto:

1. INTRODUÇÃO

     O ordenamento do tempo escolar em ciclos, no lugar de série, na Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, só pode ser compreendido no contexto do Programa Escola Plural. Como se sabe, a Escola Plural não é apenas uma proposta pedagógica, nem se confunde com uma simples mudança de metodologias. Trata-se, antes de tudo, de um projeto político que se diferencia de outras propostas consideradas modernas. Principalmente daquelas que procuram diminuir os custos da educação, na medida em que tem como finalidade a formação do aluno inserido no coletivo das transformações culturais e sociais.
     Uma das maiores preocupações que movem, hoje, o mundo globalizado, refere-se à exigência de atendimento, pelos sistemas de ensino, das demandas de qualificação para o mercado. A proposta político-pedagógica da Escola Plural opõe-se frontalmente ao pressuposto de que as instituições educativas devam ser regidas pelo compromisso de acolhimento e satisfação de tais demandas. Daí, questões cruciais serem levantadas: como romper com essa mentalidade para que o processo ensino/aprendizagem seja motivado por objetivos que ultrapassem os limites das pressões economicistas? Como fazer frente à lógica neoliberal e assumir valores da cidadania relativos à solidariedade, cooperação e compromisso ético com o público?
     O Programa Escola Plural foi instituído como uma das possíveis respostas às essas questões. Tem como horizonte uma escola voltada para a complexidade de espaços e tempos socioculturais de seus protagonistas, e, como base, o patrimônio de práticas exemplares exercidas na Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, sintonizadas com as idéias de uma escola democrática e igualitária. Assim, a Escola Plural vem propiciar rupturas já desejadas e até certo ponto ensaiadas no próprio sistema quanto a: concepções e modelos de aprendizagem e desenvolvimento antigos e superados; ações administrativas autoritárias e centralizadoras na RME e na escola; aspectos da cultura escolar que perpetuam a dominação, quer do ponto de vista das classes sociais, quer mesmo do ponto de vista do sujeito aprendiz; normas autocráticas que regulam as relações pedagógicas; metodologias e práticas excludentes de ensino; cultura do trabalho individualista, etc.
     Pelas suas características, portanto, a Escola Plural amplia os espaços educativos para além dos muros da instituição escolar, reformula a noção de currículo, de processo ensino/aprendizagem e de avaliação, e repropõe, com argumentos consistentes, a continuidade da trajetória escolar do aluno sem as restrições da medida de tempo característica da seriação.
     Consistindo num artifício favorável à democratização da educação nos termos descritos, o ciclo dá sustentação às oportunidades de formação do educando como sujeito de direitos, tendo seu processo de formação e ritmo de aprendizagem respeitados ao longo desse processo. Entretanto, a implantação dos ciclos não garante, por si só, a democratização da educação se a escola não incorpora, como próprio, o papel político de garantir um ensino da melhor qualidade possível para todos. Isso implica, em princípio, a anulação dos controles de seletividade e exclusão daqueles alunos que apresentam maiores dificuldades para aproximar-se dos padrões escolares idealizados.
     Vale frisar que a implantação dos ciclos não é artimanha para camuflar os índices de evasão e repetência; tampouco pode ser interpretada como mecanismo neoliberal de afrouxamento de rigor do processo educativo, que poria em risco a preparação dos alunos da rede pública, colocando-os em desvantagem quando comparados com os que passam por experiências pedagógicas supostamente mais puxadas.
     É preciso, ainda, reconhecer que o alargamento do tempo necessário ao aluno, para que ele possa organizar suas trocas com o meio escolar, é igualmente relevante para o professor e para a escola demonstrarem quanto são competentes no cumprimento de suas funções.
     Por fim, defendemos a implantação dos ciclos de formação como opção ética da maior responsabilidade, razão por que devemos passar a limpo os fundamentos políticos e teórico-práticos dessa opção.

 

2. - POR QUE CICLO EM LUGAR DE SÉRIE ?

     Esta é uma pergunta que muitos se fazem, na tentativa de encontrar justificativa para abandonar uma tradição milenar - a da seriação - e abraçar outra lógica de organização do tempo escolar - a do ciclo-, cujos argumentos nem sempre são apresentados com a clareza, a consistência e a profundidade requeridas.
     Para fins de melhor compreensão, agrupamos os argumentos a favor do ciclo em dois blocos: os de natureza política e os de caráter eminentemente teórico-práticos. Ressalvamos, porém, que ambos os blocos estão organicamente articulados e que a arbitrariedade da separação tem o objetivo didático de facilitar a interlocução com os educadores e com os leitores em geral.

2.1 - Argumentos políticos

     Supomos que nenhum educador se posicione contra o direito à educação. Pelo contrário, as lutas para a formalização desse direito sempre contaram com os educadores na linha de frente. Por isso, as conquistas alcançadas, nesse terreno, são uma vitória também dos profissionais da educação. Mas, se o reconhecimento do direito à educação é muito fácil em se tratando do acesso à escola, o mesmo não ocorre quando se trata de manter o aluno nessa instituição, provendo-o de meios necessários para que ele possa dela usufruir de fato. Nesse momento, a afirmação do direito à educação pode transformar-se, aliás, em sua negação quando, ainda que inconscientemente, traímos nossas próprias convicções por meio de comportamentos e práticas excludentes.
     Lembremos que o Ensino Fundamental de 8 anos de duração é o mínimo de escolaridade obrigatória e gratuita prevista por lei, conforme a Constituição Federal, a LDB em vigor e o Plano Nacional de Educação. O Município de Belo Horizonte, na gestão Patrus Ananias, ampliou para 9 anos o direito à educação pública e gratuita sob a sua jurisdição. Isso quer dizer que todo aluno tem a prerrogativa de freqüentar a escola municipal nesse espaço de tempo. Qualquer mecanismo que dificulte sua formação escolar deve ser objeto de avaliação rigorosa. Caso contrário, estaremos fortalecendo a concepção de escola como organismo para aprofundar as desigualdades sociais.
     Quando dizemos que a instituição do ciclo é uma opção ética, o fazemos porque cabe a nós decidir, no terreno da prática, como proceder com o aluno durante o tempo que lhe é devido. Se optamos pela seriação, teremos os resultados já conhecidos: expressivos contingentes de alunos são obrigados a retroceder, vão ficando para trás e raramente conseguem levar a bom termo um projeto de vida estudantil, ou até mesmo delineá-lo. Se, por outro lado, admitimos que o esquema da seriação tem-se demonstrado inoperante e injusto, procuramos experimentar outras modalidades de arranjo de tempo para regular as exigências de resultados que sejam mais concordantes com a complexidade da função educativa tanto para alunos quanto para professores e escolas.
     Assim, a opção ética refere-se, basicamente, à consideração do direito à educação, ao cumprimento do dever de educar e à justiça com os atores da cena escolar. Nesses termos, a dimensão político-pedagógica do programa Escola Plural fica bem explícita ao se implantar, antes mesmo da aprovação da LDB 9394/96, os Ciclos de Formação como um dos instrumentos sociais de democratização do ensino nas escolas da RME de Belo Horizonte.
     A instituição dos ciclos de formação adensa o conjunto de medidas para mudar a escola, legitimando-a como espaço público de construção democrática, e reorganizando todas as suas áreas (administrativa, curricular, metodológica etc) em torno do princípio da justiça social. Para isso, a Escola Plural apóia-se no conhecimento científico do ser humano em desenvolvimento e lança-se num programa educacional aberto às transformações necessárias para cumprir seu papel de formar sujeitos de direito, cidadãos políticos capazes de ocupar um lugar qualificado na sociedade e nela atuar de forma crítica e consciente. Isso se concretiza com o direito a uma escolaridade de qualidade, ininterrupta, que dá ênfase aos aspectos da formação do aluno enquanto sujeito de cultura. Uma cultura que, segundo Palácios, engloba aspectos diversos como "conceitos, explicações, raciocínios, linguagem, ideologia, organização familiar, de trabalho ou econômica, tipo de moradia, etc.". COLL, C., Palácios, J. e Marchesi, A (org.). Desenvolvimento psicológico e educação, vol. 1 Porto Alegre: Artes Médicas, 1995, p. 333. O direito a uma escola entendida como espaço de vivência afetiva, social e histórica do educando, "sintonizada com a pluralidade de espaços e tempos socioculturais" Proposta Político Pedagógica da Escola Plural. Caderno 1. Belo Horizonte. SMED. 1994 de que participam os alunos.

     Enfim, a organização por ciclos instiga uma reflexão acerca das dimensões sociopolíticas da escola, facilitando o desempenho de seu papel no movimento das transformações sociais. Propõe uma escola engajada na formação real de cidadãos, numa prática que integra a dimensão social e individual na construção de uma nova cultura escolar que busca garantir:

2.2.- Argumentos teórico-práticos

     A sociedade atual apresenta-se enredada numa cultura de velocidade e eficiência que afeta diretamente nossa consciência. Acreditamos que a velocidade reflete o estar alerta para o mundo competitivo, para o poder e para o sucesso dentro dos padrões do capitalismo contemporâneo. Como estamos sempre atropelados por compromissos, movidos pela falta de tempo, recorremos à lógica do tempo para classificar nossos alunos da mesma forma que classificamos a produção e os produtos para consumo. Colocamos um alto valor na cultura da velocidade, invertendo a função do tempo. No lugar de fazermos dele um instrumento para facilitar nossa vidas, tornamo-nos seus escravos. E, por razões culturais e não cognitivas, tendemos a avaliar a aprendizagem dentro da nossa percepção de tempo assim construída. Os alunos que se enquadram nos valores de velocidade e eficiência são considerados inteligentes e hábeis, enquanto aqueles que fogem a esse padrão social são considerados atrasados e lentos RICCI, Rudá, O perfil do educador do século XXI, Belo Horizonte, Seminário de Formação de Educadores, Regional Pampulha, 1997.. Dessa forma, perpetuamos o status quo e negamos as diferenças, num testemunho inequívoco de que as oportunidades para os alunos da última categoria limitam-se à vaga e não aos benefícios que a escola, em tese, produz.
     Coerente com a tradição expressa, a escola tem tratado a aprendizagem sob a forma de generalizações previsíveis, que pode ser obtida ao estabelecer um calendário rígido de ensino, dando muita atenção ao desenvolvimento e aplicação de instrumentos precisos de medidas. Como se não bastasse o calendário de doze meses, outros parâmetros de medida do tempo de aprendizagem são adotados : o semestre, o bimestre e o módulo aula.
     Os tempos de escolaridade já não podem permanecer os mesmos, circunscritos a um currículo que não resistirá mais às mudanças quando submetidos ao crivo das diferenças. Ao exercer um controle rígido sobre o tempo em detrimento de um bom funcionamento do trabalho escolar, não consideramos o significado dessa conduta para a aprendizagem do aluno. Como conseqüência, a educação é pensada em termos quantitativos, pelos quais os alunos aprendem unidades e peças separadas de informações, sem relação com suas experiências e com os contextos mais globais.
     O tempo é usado, portanto, como instrumento de predição e controle, o que é confortável quando, em nome da exaustão de um currículo pronto, imposto e aplicado de forma linear, desconsideramos as necessidades de formação do aluno, pressupondo que o conhecimento se dá pela soma das partes e dos tempos, independente dos processos de subjetivação de quem conhece. É preciso avançar na compreensão da dinâmica do tempo para a educação: uma dinâmica que valorize o conhecimento da cultura do professor e do aluno, suas experiências e conflitos pelos quais constroem e aprimoram suas identidades e comportamentos. Os tempos de aprendizagem devem, pois, ter prioridade sobre o ritmo artificial da ordem que rege a cultura educacional vigente, com seu tempo de relógio processado.
     Isso posto, chamamos atenção para os seguintes pontos teórico-práticos que sustentam a defesa do ciclo em vez da série :

  1. A amplitude do dever de educar:

    Como se pode observar, a concepção de ciclos, enquanto unidade de tempo, vincula-se a um projeto social de educação no qual prevalece a lógica do direito à educação na acepção de direito à formação de sujeitos socioculturais, considerando-se a multiplicidade das suas dimensões humanas. Dessa forma, são colocados diferentes papéis para alunos, professores, escolas e associados que, em órgãos colegiados, entram em interação com vistas à análise, reflexão e encaminhamento de soluções necessárias ao bom termo da atividade educativa. É de todos, portanto, a responsabilidade pela construção desses espaços coletivos de discussão, avaliação e planejamento dos processos vividos pela escola. Esses processos demandam um tempo mais elástico pois, se somos pressionados para fazer julgamentos definidores da vida do aluno em um curto espaço de tempo, a tendência é restringir o processo de formação ao que parece poder ser mais objetivamente desenvolvido e avaliado: os conteúdos programáticos.
    Na verdade, estamos falando aqui de maior chance no que se refere à função de educar, com vistas à consideração e exercício da cidadania em suas esferas civil (ou dos direitos fundamentais) e cívica (ou dos deveres como compromisso ético perante os concidadãos). A seriação não é impedimento para que tal função seja exercida, assim como a instituição dos ciclos não nos permite inferir que, naturalmente, a esse respeito possa ter-se total garantia. Entretanto, na sistemática de ciclos, há muito mais probabilidade de estudo reflexivo e trabalho coletivo em torno das estratégias da formação intelectual, moral e socioafetiva do aluno como sujeito imerso na cultura, na história e nas relações sociais cotidianas de diferentes matizes. O dever de educar, assim entendido, requer um tempo sem pressões imediatistas, a fim de que se possa respeitar a inteireza dos processos de socialização do aluno como cidadão. Por isso, afirmamos que o sucesso do ciclo está sempre na dependência das finalidades claramente expressas em propostas educativas que consigam ressonância e o voto de confiança dos diferentes segmentos envolvidos na vida escolar. A Escola Plural, quer pela sua procedência, quer pela sua formulação indiscutivelmente progressista e engajada, é fonte da credibilidade necessária para que se façam, na Rede Municipal de Ensino, apostas mais seguras na direção das transformações inadiáveis.

  2. A complexidade do processo ensino/aprendizagem

    Ensinar para que se aprenda e aprender o que se ensina não são tarefas fáceis. Por mais competente que seja e por mais que se disponha a realizar um trabalho objetivamente considerado da melhor qualidade, o professor não consegue fazer com que todos os alunos aprendam o esperado, pelo menos, no mesmo espaço de tempo. Existem aqueles que aprendem mais, os que ficam na média com 50 ou 60% de aproveitamento e, finalmente, os que se situam abaixo da média com pontuações diversas.
    Sem falar dos problemas que temos com a avaliação - e eles são muitos-, o fato é que não existe uma relação mecânica, natural ou espontânea entre ensinar e aprender. Por isso, é urgente deslocar o foco da atenção do ensino em si e da aprendizagem em si para a relação ensino/aprendizagem. Só assim podemos nos aproximar da complexidade implicada em tal relação, sendo imprescindível uma análise acurada dos seus fundamentos.
    É, ainda, predominante a concepção da aprendizagem humana como decorrente de simples pressões externas, conforme afirmam os behavioristas, célebres partidários da epistemologia empirista. A forma de conceber a aprendizagem como mudança de comportamento, ocorrendo no tempo em função do treino ou da experiência, típica dessa direção epistemológica, tem fornecido munição para ações pedagógicas baseadas na crença de que uma boa aprendizagem é a contrapartida do bom ensino, e que é possível antecipar-se aos resultados pretendidos. Assim, o behaviorismo oferece justificação técnica para a consideração do aprendiz como caixa registradora de informações, como ser passivo que nada cria de original porque nele não se reconhece a condição de sujeito. Mas, os professores sabem que o problema não é tão simples assim. E, se tal concepção é ainda dominante nas escolas, não é por escolha premeditada dos professores, mas porque, desde a sua formação até as condições organizativas do sistema de ensino e da instituição escolar, tudo converge para práticas antidemocráticas.
    Nas duas últimas décadas, entretanto, assiste-se a um combate progressivo contra os reducionismos da concepção de aprendizagem apresentada, o que se dá no contexto dos ideais dos movimentos sociais em prol da democratização da educação. É, então, que se ergue a bandeira do construtivismo significando a defesa de uma outra concepção de aprendizagem que leve em conta a atividade auto-organizadora do sujeito na construção do conhecimento e na aprendizagem. Isso não quer dizer, entretanto, que se tenha encontrado a solução para os problemas da aprendizagem escolar. O construtivismo não é, não pretende, nem pode assumir uma promessa desse gênero.
    Por outro lado é inegável que o construtivismo, apesar de todos os equívocos de sua divulgação, representa um grande avanço no que se refere às conceituações anteriores, quer quando teoriza sobre questões gerais do conhecer, quer quando investiga o processo de estruturação cognitiva do sujeito, quer, ainda, quando favorece uma nova leitura do ato de ensinar/aprender.
    De acordo com as formulações dos construtivistas, o aluno não é meramente um recipiente passivo dos conhecimentos transmitidos pelo professor, nem o professor é um modelo de comportamento sempre bem-sucedido.
    A relação ensino/aprendizagem só é efetiva quando é fruto da compatibilidade de objetivos, emoções, conteúdos e projetos compartilhados por professores e alunos. Se isso não ocorre, o que é muito freqüente, o processo pedagógico torna-se tenso e, na maioria das vezes, desagregador ou inócuo.
    Para ajudar a esclarecer o que há de problemático na relação em foco, podemos lançar mão de contribuições das ciências da cognição, em especial das provenientes da teoria dos sistemas no que tange à noção de sujeito.
    No campo da educação, tornou-se comum falar de sujeito, de sujeito ativo, de sujeito que constrói o seu próprio conhecimento e assim por diante. O que isso quer dizer ?
    Ao fazermos uso de tal terminologia, situamo-nos num lugar teórico determinado. Falar de sujeito ativo significa referir-se aos sistemas autônomos, que são sistemas fechados porque auto-organizadores. Mas o que o sujeito organiza internamente de forma a transformar-se e, ao mesmo tempo, preservar sua integridade enquanto sistema? Obviamente organiza informações que retira do meio. Então, o fechamento do sistema depende da sua abertura às trocas energéticas e informacionais e, como corolário, a autonomia se define pela dependência. Esse paradoxo exposto por Foerster ainda na década de 60 (1968), foi retomado por Morin que passou a definir o sujeito como sistema auto-eco-organizador, a fim de marcar a unidade indissolúvel do sujeito com o mundo.
    Com base na conceituação apresentada, a relação do sujeito da aprendizagem com o sujeito do ensino, como sistemas autônomos, é altamente complexa porque consiste no que Maturana e Varela chamaram de acoplamento estrutural entre dois ou mais sistemas. Não é só o aluno que apresenta dificuldade e resistência para estabelecer vínculos com certos objetos de conhecimento e com o professor. Este, também, passa pelos mesmos apuros para conseguir congruência com seus alunos. É por isso que defendemos a tese de que a relação ensino/aprendizagem é probabilística, tornando-se mais ou menos possível conforme se consiga fazer apelo às estruturas cognitivas potenciais, com todas as suas injunções histórico- culturais, afetivas, étnicas, de gênero, etc. É por isso, também, que defendemos a ampliação do tempo, que é mais propícia ao conhecimento mútuo entre os participantes do processo educacional, ao diálogo, à avaliação permanente, ao desenvolvimento da confiança e ao estabelecimento de laços de compromissos compartilhados - condições básicas para que os sistemas entrem em comunicação para que aconteça o acoplamento estrutural mencionado. Em vista disso, o ciclo de formação constitui uma medida muito mais realista e auspiciosa para o êxito escolar do que a seriação.

  3. O caráter construtivo e indeterminável da relação aprendizagem / desenvolvimento

    O título deste item prenuncia um outro argumento fortíssimo em favor do ciclo. Os estudos da relação aprendizagem/desenvolvimento, cujas primeiras elaborações são atribuídas a Vygotsky, permitem interpretações e apropriações muito convenientes para o assunto aqui tratado, bem como para a Pedagogia em seu amplo espectro.
    Contrariando posições correntes, Vygotsky inverte, na seqüência temporal, a relação aprendizagem/desenvolvimento. Em lugar da defesa de que seria preciso atingir-se determinado nível de desenvolvimento para que fosse possível lidar com certa aprendizagem, Vygotsky afirma que a aprendizagem deve se antecipar ao desenvolvimento, por ser um mecanismo que o completa, projetando-o para patamares mais elevados.
    No sentido de fundamentar essa hipótese, ele utiliza-se de dados de pesquisa que evidenciam duas zonas de desenvolvimento sempre presentes nos seres humanos.
    A primeira delas, chamada de zona de desenvolvimento real ou efetivo (ZDE), onde se inserem as conquistas ou as sínteses já realizadas pelo indivíduo no curso de sua história social, é aferida pelos testes e pelas avaliações de desempenho, e nada informa sobre as aquisições futuras.
    A segunda, intitulada zona de desenvolvimento próximo (ZDP), é constituída das possibilidades abertas pelo que foi consolidado e que estão em vias de se tornar desenvolvimento efetivo, sendo para isso necessária a ajuda, a mediação instrumental de um agente externo.
    A zona de desenvolvimento próximo é, dessa forma, o espaço de investimento do processo ensino/aprendizagem que, quando bem-sucedido, amplia o âmbito do desenvolvimento efetivo, dando origem a uma nova zona de desenvolvimento próximo, e assim sucessivamente. Isso quer dizer que o destino da zona de desenvolvimento próximo é de compor, com a zona de desenvolvimento real, uma totalidade enriquecida e mais poderosa.
    Esse movimento incessante põe em relevo o papel da aprendizagem como provocadora de desenvolvimento real e de novas zonas de desenvolvimento próximo, uma vez que, para Vygotsky, o que o aluno é capaz de realizar hoje, com a ajuda de outro mais experiente, será capaz de realizar sozinho amanhã.
    Finalmente, é preciso dizer que o alcance de um mesmo nível de desenvolvimento efetivo por vários alunos não é indicador das ZDPs dos mesmos, pois elas são extremamente diferenciadas. Assim, quem chegou junto com outro, ou mesmo antes, num determinado nível de desenvolvimento real, não significa que tenha chegado melhor ou que não vá ser superado brevemente. Se aquele que se encontra atrasado, ao chegar, apresentar uma zona de desenvolvimento próximo mais ampla, terá tudo para dar um salto de qualidade e igualar-se ou passar na frente do que se encontrava, no momento da avaliação anterior, em posição mais vantajosa.
    Diante do exposto, é lícito concluir que o tempo da aprendizagem é da esfera do sujeito e não pode ser determinado pelo professor, pelo currículo e tampouco pela escola. O que é possível e desejável é o estabelecimento de expectativas com base em critérios mais abalizados de intervalo de tempo médio, para que o processo ensino/aprendizagem puxe, de fato, o desenvolvimento, ou seja, para que o processo ensino/aprendizagem possa provocar mudança estrutural nas formas mentais de interpretação do mundo.
    Insistimos que só é possível estabelecer tempo médio uma vez que não se pode determinar o tempo preciso de efetivação de aprendizagem de cada aluno particular. A seriação, portanto, como espaço de tempo muito curto, alheio aos critérios epistemológicos referentes à gênese dos processos cognitivos esocioculturais, apresenta os sérios inconvenientes de:

    • puxar o aluno para trás, no lugar de puxá-lo para frente, ou seja, fazer o aluno voltar a um ponto por ele já superado, podendo ter como conseqüência o desinteresse, a ausência de desafio e o rebaixamento da auto-estima que só prejudicam o seu desenvolvimento;
    • perder de vista a zona de desenvolvimento próximo como uma aposta no futuro, na continuidade do processo e na consideração de que ela, quando se torna zona de desenvolvimento efetivo, pode dar lugar à "recuperação" do tempo que fora considerado improdutivo.

    Aqui é bom reiterar que chegar antes não significa chegar melhor, pois, ao alcançar conceituações e condutas mais complexas e mais adequadas segundo o caso, tem-se a oportunidade de preencher lacunas, ampliar o que já foi aprendido, proceder a reestruturações mais fecundas e corrigir erros e ambigüidades de aprendizagens inadequadas.
    Entretanto, para que isso ocorra, é preciso, também, que o currículo seja recursivo, no sentido de estar retomando continuamente aprendizagens anteriores e, ao mesmo tempo, seja projetivo, no sentido de estar olhando para diante, prevendo as complexificações futuras. Em síntese, isso nos conduz à visão de currículo como estrutura narrativa e relacional. Narrativa, porque, como construção, deve contar a sua própria história; relacional, no sentido de prover os meios para que suas diferentes partes possam articular-se, a fim de preservar a integridade do sistema enquanto totalidade.
    Enfim, tem-se a necessidade de um outro aparato de definições para o processo avaliativo. É preciso encará-lo como julgamento de valor para embasar a tomada de decisões sobre a caminhada do aluno; caminhada para frente e não para trás. Isso requer uma completa mudança do conceito, das práticas e das funções da avaliação da aprendizagem escolar.
    A esse propósito, vale lembrar que termos como aprovação, reprovação, promoção e similares não são apropriados ao novo modo de conceber o direito à educação, como direito de se formar na escola. Quando defendemos a não-retenção, pelos motivos que esperamos terem sido esclarecidos ao longo deste documento, longe estamos de identificar a não-retenção com a aprovação. A não-retenção é, convenhamos, uma tomada de posição ética quanto ao direito à educação e quanto às características do processo ensino/aprendizagem e do sujeito aprendiz. Quer-se dizer, enfim, que não é profícuo, muito menos justo, reter o aluno na mesma série, significando concretamente fazê-lo retroceder, quando o processo de aprendizagem vivido por ele é um processo progressivo, de construções sucessivas com chances de superação das defasagens anteriores.

 

BIBLIOGRAFIA

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