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O PAPEL DO DIRETOR NO QUADRO DE REESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO
Dalila Andrade Oliveira

Resumo:

     Discutir o papel do diretor em face de uma nova realidade que se delineia passa por discutir as questões da administração da educação, tendo como centro a problemática vivida no interior da escola, ou seja, apontando como eixo central na discussão a escola como o local onde se dá a apropriação de serviços educacionais.

     Na história da educação brasileira, as preocupações concernentes à administração escolar esteve na maioria das vezes relegada à articulação do sistema nacional de ensino e os vários órgãos que o compõem. A administração da educação então por muito tempo ficou circunscrita à gestão e à implementação das políticas públicas no setor.

     Só mais recentemente, a administração da educação vai ser localizada no interior da escola, melhor dizendo, passará a se ocupar das relações internas à escola(1)

     A preocupação com essas questões vai aparecer inicialmente como uma transferência das teorias administrativas empresariais para o interior da escola (2) Essa necessidade de se infletir sobre as questões administrativas da escola tomarão maior densidade na medida em que, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 5692 de 1971, assistimos a uma rápida expansão da rede pública de ensino no Brasil. Esse súbito crescimento vai obrigar a um aumento da rede física que resultará não só num acréscimo considerável do número de estabelecimentos de ensino, mas também na ampliação dos já existentes. Tal crescimento se deveu, em grande parte, ao alargamento do direito à escolarização de quatro para oito anos aos cidadãos brasileiros de sete a quatorze anos de idade. Os motivos que levaram o regime autoritário naquele momento a essa ampliação de direitos não podem ser tomados como uma dádiva certamente, mas, devem ser buscadas nas pressões que os movimentos sociais exerceram no pós-guerra acerca das demandas educacionais(3) na necessidade de uma formação específica de força de trabalho com fins ao atendimento das demandas do processo de industrialização emergente.

     Nesse momento, década de 70 início dos anos 80, a orientação dos programas oficiais para a educação nos aspectos relativos à administração escolar, congruentes à influência tecnicista do texto legal, centrava-se nas orientações da "Administração Científica do Trabalho", nos príncipios do Taylorismo e Fayolismo.(4) É o que podemos observar nas orientações de um importante autor à época:

     "O progresso da ciência e da técnica com sua projeção nas atividades humanas, precisa ser assimilado pelos administradores escolares, o que dará uma consciência de efetiva prioridade aos problemas da educação brasileira. A primeira preocupação, no entanto, precisa se concentrar na utilização dos recursos da Organização Científica do Trabalho, deixando de lado o primarismo dos 'jeitosos' ou daqueles curiosos da administração, que não se formaram para esse entendimento. O 'autoritarismo' em matéria de Administração Escolar é responsável por uma série de erros imperdoáveis, motivando um atraso crescente no equacionamento dos problemas da nossa educação." SKIER,1969:p.35)

     É dentro dessa concepção que aparecem os especialistas na organização do trabalho na escola, produto, é claro, da diversificação da divisão do trabalho nesta. É também por essa época que vão aparecer as habilitações para orientação, supervisão e administração escolar nos cursos superiores de Pedagogia (5).

     Esta complexificação da divisão do trabalho escolar será também propulsora de um certo esvaziamento do conteúdo "profissional" do trabalho do professor, que lentamente vai perdendo seu "status" de mestre, de educador e cada vez mais se vê inserido em relações de trabalho organizadas na sua forma capitalista. Relações que homogeneizam, padronizam e "pasteurizam" o trabalho escolar, transformando-o num trabalho cada vez mais sujeito a um intenso processo de proletarização.(6)

     Para o professor, em vez de sacerdócio e missão, o magistério na rede pública vai se revelar, a partir daí, uma possibilidade de trabalho cada vez menos atraente e compensatória. Somados às precárias condições salariais e de trabalho, a verticalidade das orientações expressas pela Administração Científica do Trabalho tentava reduzir o professor a um mero executor, mesmo que saibamos que, por sua relativa autonomia e pela natureza pedagógica de suas atividades, isso nunca tenha atingido sua plenitude.(7)

     O administrador escolar aparece neste cenário como o especialista em administrar. O gerente que coordena e controla o trabalho alheio, recolhendo o saber de todos em suas mãos.

     Esse papel atribuído ao diretor de escola, que a partir daí assume posição de especialista, contém em sua essência os princípios tayloristas da gerência, como aquele que organiza, controla e administra. Aquele que detém a concepção do trabalho, planeja e controla a execução do mesmo. Concebendo o ato de administrar como a seleção de recursos para se atingir determinados fins, inferimos que não é possível discutir o papel do administrador escolar sem antes clarearmos a função ou os fins determinados para a escola pública.

     Qualquer postura que se pretenda coerente não poderá jamais privar-se dessa discussão; premissa básica, sem a qual incorreremos em debate diletante, ingênuo ou mesmo comprometido com uma postura política. Postura essa que mascara seus objetivos no falso discurso da necessária neutralidade e isenção.(8) Estes postulam que somente o caráter técnico do administrador é capaz de administrar a escola de forma correta e imparcial. Negando o caráter político da administração, põem em marcha o seu próprio projeto político. O tecnicismo em matéria de administração é eufemismo. Sua nocividade está justamente no fato de se colocar como o único, o verdadeiro, o universal, reduzindo os demais interesses no interior da organização a particulares e portanto parciais.

     Por isso o debate em torno do papel do diretor não pode estar descolado da função social da Escola - a que fins esta busca atender. Somente tendo claro as funções desta, podemos definir qual o papel do diretor e como ele deve ser selecionado. Assim, podemos perceber que as posições a esse respeito variam conforme variam os projetos escolares.

     As posições favoráveis a concursos públicos para o provimento do cargo de diretor alojam-se numa defesa do caráter técnico da "profissão" (função) e acabam por considerar que a escola, qualquer que seja ela - do centro ou da periferia, urbana ou rural - tem seus objetivos claros e previamente definidos.(9) Aqueles que defendem a nomeação dos diretores pelo poder executivo não merecem aqui nem mesmo nossos mais humildes comentários já que possuem uma postura clientelista e reacionária que a própria história tem se encarregado de descartar.

     Já as eleições diretas para diretores, têm como maior virtude a explicitação do debate no contexto da escola. Permitem que os vários segmentos que a compõem se manifestem, defendam seus interesses, confrontem-se, pleiteiem, disputem e ao final, pela proeminência do debate, cheguem a uma dada convivência. O que se discute, o que se debate, o que se disputa é: quem administra a escola. O que significa o mesmo que dizer: que escola e para quê?

     Este contexto quebra um tradicionalismo que durante décadas tornou imutável e impermeável às mudanças a rotina escolar; rompe com uma disciplina que até bem pouco tempo se acreditava ser imanente ao fazer pedagógico. Coloca, assim, a possibilidade de atribuir múltiplas finalidades a essa escola, ou ainda de mudar o seu foco, o seu eixo, o centro dessa organização e adotar outro.

     As eleições diretas apresentam a possibilidade de introduzir certos elementos de horizontalização em uma relação cristalizada de cima para baixo. Porque ela não só permite, como necessita da participação de todos, sem a qual não é possível prosseguir, pois falta-lhe legitimidade. É nesta busca de autorização, de respaldo, que os portadores das condições últimas para gerir a escola vão infletir sobre os demais segmentos que a compõem. Esse exercício aproxima os "dirigentes" dos "dirigidos", elimina mediações e quebra, em parte, a arrogância dos técnicos, daqueles que detêm o discurso competente sobre aqueles que não estão autorizados a falar(10). Mas, as eleições diretas sozinhas não garantem muito, é preciso que outros canais de participação estejam vivos e permanentemente revigorados para que a chamada gestão democrática se cumpra. Nesse sentido, os conselhos escolares ou colegiados são peças fundamentais dessa engrenagem. Os colegiados devem constituir-se num espaço de construção coletiva que em determinados momentos funcionará como uma arena onde interesses distintos (pais/alunos X professores/trabalhadores X direção) se confrontam; em outros momentos deverá constituir-se em palco de denúncia, ou em instânciaconsagradora de certas práticas, decisões e propostas; em muitos outros em um grupo de trabalho que pensa, elabora e determina os rumos dessa escola.

     A descentralização administrativa, proposta hoje presente nos programas oficiais do governo, revitaliza essa capacidade dos colegiados de poderem definir o que fazer com os recursos (poucos) que chegam até a escola: como gastá-los, como demonstrar esse gasto, etc...
Porém as questões administrativas não podem consumir toda a disposição e energia dos que tentam coletivizar a administração da escola. As questões pedagógicas, os conteúdos e as práticas escolares também devem ser pautadas nesses espaços, devem fazer parte da construção da escola.

     Assim, essa descentralização exige da organização da escola um domínio de capacidades inerentes a contabilidade, compras, etc...; trabalho este que não precisa estar concentrado na figura do diretor. As questões administrativas de uma escola não possuem um traço específico escolar. São questões comuns à rotina burocrática de qualquer instituição: controle de pessoal (horário), controle de contas a pagar, entre outras tarefas menores.

     Essas rotinas absorvem quase completamente todo o tempo do diretor. Esvaziam de conteúdo crítico e analítico suas atitudes, reduzindo-o a uma função de gerente, de controlador da força de trabalho e de administrador de recursos escassos, em síntese: em funcionário de uma organização.

     O diretor se vê consumido por uma rotina burocrática que cotidianamente absorve toda sua capacidade criativa, colocada a serviço de pensar soluções mágicas para equacionar os vários problemas em condições materiais tão adversas.

     Justamente por entendermos que o papel do diretor é algo muito maior que isso, mais importante e necessário, é que localizamos sua função em outro espaço. Consideramos que essa situação retira do diretor de escola o seu específico de pedagogo: daquele que entende das questões educacionais, do currículo, da didática, da estrutura e do funcionamento do ensino. Entendemos que o diretor de escola deve ser visto dentro desse espaço: de um profissional que compreende as funções da escola nas suas múltiplas dimensões e relações com a sociedade.

     Na medida em que passa a ser uma realidade o processo de escolha de diretor de escola via eleições diretas, o quadro muda. Considerando que, para tal fim, se advoga que são potencialmente candidatos todos aqueles professores com formação superior e do quadro permanente da rede, não se restringindo portanto a habilitações e especializações. Essa situação coloca novas exigências para o perfil desse diretor, oriundas do processo de escolha direta pela comunidade, que pressupõe que este seja capaz de responder minimamente às demandas colocadas por seus eleitores.

     Sendo assim ele deverá atuar como um representante dos segmentos sociais que compõem a escola, devendo portanto se pautar pela coerência com os fins que esses segmentos depositam na escola pública ou esperam dela. Essa coerência exige do diretor uma aproximação indispensável à comunidade (pais/alunos/funcionários/professores) mediante um instrumento legítimo e pensado para tal que são, conforme mencionado anteriormente, os colegiados ou conselhos de escola. Entender as funções às quais esta escola deve responder e disponibilizar recursos no sentido de colocar em desenvolvimento projetos, abrir a escola à participação de todos, efetivar seu caráter público, de espaço público, de todos. Esse é o papel do diretor. O que significa contribuir na ruptura com o estranhamento e distanciamento revelado por uma escola tão excludente. Somente buscando superar entraves corporativos, localistas, podemos dar respostas a um nível mais amplo.

     As transformações processadas no mundo atual não só exigem da escola que esta repense seus padrões de escolarização, seus objetivos formativos como também recoloca em xeque sua própria organização interna. São pressões em torno do que se ensina, para quem se ensina e para quê. Ao mesmo tempo que esses padrões são questionados pela própria dinâmica de reestruturação capitalista, o são também pelos movimentos sociais, pela pressão exercida de dentro para fora da escola.

     Esses movimentos aparecem neste cenário buscando uma readequação da escola aos seus objetivos: ao alargamento dos direitos sociais - o direito a participarem dessa instituição social e influir nos seus desígnios. Porém a participação implica a existência de canais próprios e, primordialmente, o domínio de informações básicas ou, se preferirmos, informações mínimas necessárias ao entendimento dos processos, à distinção de projetos e propostas, à identificação dos sujeitos envolvidos.

     Marilena Chauí (1984), em seu livro Cultura e Democracia - o discurso competente e outras falas discutindo a questão democrática, nos alerta para o fato de que não é possível pensar em democracia sem criar mecanismos de participação e não é possível pensar em participação sem informação.(11)

     Na gestão democrática da escola pública, é necessário, para se obter uma gestão participativa de fato, com o envolvimento de todos, ou de muitos, que haja transparência e visibilidade nos processos de organização, controle e administração. Não é possível pretender a participação da população na escola, através dos colegiados, por exemplo, sem que esta se sinta realmente parte desse todo.

     Só há participação quando os envolvidos se sentem integrados, ou seja, partícipes do processo. Quando interferem, modificam, realizam. Sem essa possibilidade a comunidade não se vê motivada, não se entende sujeito e ao contrário, se sente muitas vezes "ludibriada", porque participa de um poder que não é seu.(12)

     É muito cômodo para as direções escolares, inclusive as eleitas, alojarem-se numa posição conformista de que a comunidade não participa da escola porque não se interessa, porque é negligente, ignorante ou porque evita trabalho pesado. Essa postura se exime de qualquer responsabilidade na condução da gestão democrática, que não se realiza por não contar com a participação dos envolvidos, sob o argumento de que a escola fez a sua parte, os canais estão criados, a população é que não participa, está descrente ou não se interessa.

     Corremos, assim, o risco de nos entorpecermos com essas "profundas e duras verdades" e nos privarmos da autocrítica, de lançarmos desafios maiores como ajudar a escrever uma nova história, a desenhar e traçar novos contornos para um sistema de ensino que precisa ser mudado.

     Mas o diretor só terá condições de captar essas dimensões na medida em que se colocar aberto e ao mesmo tempo articulado com um projeto mais amplo. O projeto de (re)construção social da Escola pública não pode estar circunscrito aos muros da escola. Ele é maior, faz parte de um projeto social, de uma forma de pensar e estruturar a sociedade a serviço de interesses diferentes, da maioria.

     Uma organização cujo eixo não seja o trabalho organizado em sua forma capitalista, mas os trabalhadores numa perspectiva de classe, onde o que define sua condição não é apenas sua inserção no processo produtivo, mas a sua identidade, o seu fazer-se classe(13) exigindo espaços de vivência, desocialização, de expressão de sua própria cultura.

     Sem essa articulação, podemos incorrer em atitudes espontaneístas, voluntaristas, que confundem a autonomia da escola com interesses localistas, imediatistas e até corporativistas.

     Por isso, é importante ressaltarmos aqui a necessária distinção entre autonomia e descentralização no campo da administração educacional. A autonomia revela a possibilidade de uma escola criar ou definir o seu projeto pedagógico e a descentralização expressa um movimento no sentido de atribuir maior mobilidade administrativa às unidades escolares, uma vez que retira certas responsabilidades da União, dos Estados e/ou dos Municípios e as repassam às escolas diretamente.

     Dentro de um contexto de constantes mutações como o que é vivenciado no momento, assistimos a uma clara reestruturação do trabalho pedagógico. São mudanças provocadas pelas novas demandas que o próprio quadro de reestruturação capitalista impõe ao setor educacional(14) e ao mesmo tempo, por uma circunstancial mudança processada ao nível, principalmente, das questões escolares, na pressão exercida pelos movimentos populares. Esse quadro anuncia uma convulsão no interior da escola. Todos os seus espaços, da forma ao conteúdo, tudo agora é passível de crítica. As tradicionais (ou nem tanto) funções no interior da escola são questionadas. Surgem outras funções que tendem a ocupar, ou mesmo modificar, esses lugares. Os orientadores e supervisores começam a desaparecer e em seus lugares (?) surgem os coordenadores pedagógicos. São conhecidos como coordenadores das áreas que compõem o currículo escolar: História, Português, Matemática, etc... São também coordenadores de turnos, de cursos e muitas vezes de projetos. São na sua maioria escolhidos diretamente pelos colegas de trabalho(15) por um período determinado de mandato, o que em certa medida garante rotatividade entre os membros e revogabilidade, pela natureza do cargo e proximidade e pela forma de escolha.

     Porém, esses coordenadores assim como os diretores eleitos demandam uma formação, ou, se preferirmos, uma atualização nas matérias educacionais, visto que assumem funções até bem pouco tempo inexistentes na escola, ou ainda pelo fato de que não possuem além de sua formação específica de professor nenhum maior entendimento das questões relativas à organização do processo de trabalho escolar e da administração do sistema de ensino.

     Qual a formação ou capacitação necessária a este novo perfil de trabalhador forjado pela reestruturação do trabalho pedagógico?

     Acreditamos mais uma vez que essa formação será congruente com o projeto que se têm de escola pública. Essa concepção sem dúvida interferirá no papel que se atribui a esse profissional. Afinal, é possível perceber pelo menos duas formas distintas de abordar este momento que denominamos aqui de Reestruturação do trabalho pedagógico:

     "Trataremos primeiramente da abordagem usual nas políticas neoliberais para a educação, explicitadas nos seus projetos de gestão escolar que têm, talvez, a sua maior expressão nos Programas de Qualidade Total na Educação."

     Nesses programas, o diretor é visto como o gerente ou o gestor da escola. Esse gestor é concebido como o diretor, controlador e avaliador da gestão escolar. Essa definição nos lembra sem muito esforço a mesma velha concepção Taylorista gerencial presente nas orientações tecnicistas do regime autoritário para a administração escolar. Parece ressuscitar (das cinzas?) e revestir-se de um certo "fetichismo tecnológico", figurando como a grande novidade. É o que podemos observar em recente livro publicado pela Editora Cortez em co-edição com o MEC e a SEE do Paraná, versão brasileira adaptada do texto Guide por la Formation des Directeurs d'École Primaire, da UNESCO, que descreve:

     "Último elo da cadeia administrativa que mantém presença real na escola, o diretor tem a responsabilidade de reunir as informações necessárias para facilitar a tomada de decisão. Além dos relatórios e das informações de ordem quantitativa colhidas pelos levantamentos estatísticos, o diretor deve desempenhar papel efetivo no controle e na avaliação do ensino realizado por sua escola, mesmo que esse papel nem sempre se encontre muito claro nos textos oficiais. Serão abordados, em primeiro lugar, o controle e a avaliação da qualidade do ensino através dos resultados dos alunos, partindo da análise individual de cada aluno e de cada classe; examinaremos, depois, os resultados globais da escola". (p.124)

     Embora esse livro, em sua introdução, revele uma importante preocupação em não ser caracterizado como um manual de instruções sobre os deveres e obrigações do diretor, ao longo de sua leitura essa preocupação parece ser esquecida. A obra lida com a constatação de que o papel do diretor mudou, que aparece no interior da escola uma nova organização e que nesse sentido o diretor deve agir de determinadas maneiras. Para ilustrar tal observação, descrevemos abaixo suas recomendações, em dois momentos diferentes do texto:

     "Enquanto Gestor, Animador e Formador, Controlador e Avaliador, o diretor de escola é um verdadeiro 'coringa', ou melhor, um 'ponto de passagem obrigatório' ,através do qual -e para além da aplicação restrita dos textos legais - passa toda a vida da escola, tomada como um conjunto." (p.135)

     "Qualquer que seja o tipo de sistema escolar, a função do diretor aparece em uma nova perspectiva global: a de provocar a melhoria do bom funcionamento da escola; a de encontrar soluções para os problemas que se colocam localmente para a implementação de novas finalidades educacionais; e a de introduzir a inovação para melhorar a qualidade e a eficácia do ensino." (p.152)

     Estas considerações parecem indicar que, com as demandas colocadas pelos novos processos de mudanças, de reestruturação capitalista, que trazem em seu bojo novas demandas educacionais, a gestão da escola não deve ser poupada ou assistir inerte a tudo. Ao nosso ver, essas mudanças vão provocar um movimento no sentido de que a gestão da escola pública assuma os critérios da economia privada, mas sobre isso desenvolvemos em outro artigo maiores comentários.(16)

     Vejamos então a segunda abordagem desta problemática: esta situa-se em outro campo. A pressão exercida pelos movimentos populares no Brasil nas duas últimas décadas caminharam no sentido de denunciar o sucateamento da escola pública através da precarização das suas condições de trabalho, da rígida divisão entre concepção e execução que acabavam por desembocar em tarefas fragmentadas, parceladas, rotineiras, e do autoritarismo da gestão escolar.

     Esses movimentos pautaram-se pela exigência de democratização da gestão escolar e por maior autonomia das escolas . Nesse processo de luta abraçaram as bandeiras de eleições diretas nas escolas e de constituição dos colegiados como fonte matricial da gestão democrática. Exigiram, na prática, a possibilidade de escreverem os seus projetos pedagógicos de forma coletiva e autônoma . Estas lutas exigiram uma resposta por parte do Estado no nível da gestão e hoje figuram em lei (Constituição Federal, Constituição Estadual e Portarias) muitas dessas condições.

     Esse processo ocasionou mutações profundas na organização do trabalho escolar. Mudanças já mencionadas como as eleições diretas para diretores e coordenadores de áreas e a constituição dos colegiados.

     Então voltemos à questão proposta: qual a formação/capacitação demandada para esses profissionais da educação?
Acreditamos que existem dois caminhos, duas orientações.

     Na primeira abordagem, por mais flexível e plástica que tente ser sua concepção do gestor/gerente escolar, esta continua a manter o corte fulcral entre concepção e execução. O papel que o gestor/gerente desempenha parece ser recolhido e sistematizado num conjunto de normas e técnicas administrativas cujo paradigma são as administrações privadas. É como se o desafio da gestão democrática pudesse ser resolvido mediante a assimilação de técnicas gerenciais que apresentam soluções "mágicas" para todas as circunstâncias encontradas no cotidiano escolar. O chamado "fracasso escolar" (evasão e repetência) é reduzido nessa concepção a um problema de má administração de recursos materiais e humanos. Portanto, para se resolver os problemas educacionais, faz-se necessário assimilar e introjetar a "competência" da economia privada no interior da gestão da escola pública.(17)

     Paro (1994), em recente pesquisa que resultou na sua Tese de Livre Docência junto ao Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da USP, constata que, numa escola pública da Rede Estadual de São Paulo de uma maneira geral, as pessoas entrevistadas (diretores, professores, funcionários, alunos e pais de alunos) tendem a valorizar a formação teórica prévia do diretor, sendo que essa formação deveria estar muito mais direcionada para o objeto de trabalho presente na unidade escolar do que para princípios, métodos e técnicas administrativas.

     Tal constatação pode nos parecer surpreendente se considerarmos que, com os desafios colocados pela descentralização administrativa que vem se configurando, conforme já mencionado, em uma tendência freqüente nos programas oficiais, tanto no nível federal quanto nos estaduais de educação, as preocupações deveriam recair sobre outros aspectos mais instrumentais, visto que esses processos dizem respeito única e exclusivamente a questões de ordem administrativa como reformas dos prédios, compra de merenda, de material escolar etc...

     Essa descentralização nos sistemas de ensino vem acompanhada de uma argumentação pragmática de que não se justifica tanta demora para o repasse de verbas às unidades escolares. Nesse sentido, a proposta de descentralização perseguida pelo Programa de Qualidade Total na Educação da SEE-MG prevê o repasse direto dos recursos para a escola e consequentemente, o planejamento orçamentário e a prestação de contas passaria a ser de responsabilidade dos colegiados, que responderiam diretamente ao Tribunal de Contas do Estado.(18)

     Dentro dessa abordagem é ainda esperado dos diretores que administrem os parcos recursos que chegam a sua escola, que respondam por todas as rotinas burocráticas e ainda que sejam responsáveis pela disciplina, pela manutenção da ordem na escola. É sabido por todos que a estrutura de poder presente na escola contribui para uma excessiva centralização nas mãos do diretor.

     A proposta de gerenciamento colocada hoje para as escolas, quer pelos Programas de Qualidade Total na Educação quer através do referendo da UNESCO, anteriormente citado, são congruentes com essa concepção de diretor de escola como um funcionário responsável por administrá-la como se o fizesse em uma empresa em dificuldades. Ou seja, um perfil de diretor cujo eixo está na lida burocrática e não no seu traço específico: o educacional.

     São invocadas as capacidades gestoriais ou gerenciais desse diretor. Suas facilidades em dar ordens, ter pulsos firmes, já que se apresenta como o controlador e avaliador da gestão escolar. São ainda ressaltadas as iniciativas desse "diretor gestor" em conhecer os textos legais acerca dessa gestão para que se enquadre dentro da norma, do instituído a priori.

     Tal quadro só reforça a tese de que estamos vivenciando um momento de mudança na organização/gestão do trabalho na escola. Esse processo, embora seja determinado pelas mundanças recentes no quadro das políticas educacionais, também deve ser interpretado como um reflexo de mudanças externas que influenciam ou invadem a escola. Não podemos, porém, deixar de considerar as tensões internas da escola, pois estas produziram um desenvolvimento significativo neste campo.

     Nessas novas orientações gerenciais, a defesa de que o diretor tenha um perfil mais gestorial é anunciada como um incremento, uma inovação. Embora tenham se passado mais de vinte anos de LDB 5692/71, assistimos neste momento a anunciação de uma revolução(19) que colocará em evidência um novo momento da Administração Escolar:

     "Durante longo período, a administração da educação, em nível da escola fundamental, consistiu numa tarefa bastante rudimentar. O diretor era encarregado de zelar pelo bom funcionamento de sua escola, concebida para distribuir um mínimo de conhecimentos iguais. Hoje, tal perspectiva está ultrapassada. As transformações que surgiram, tanto no interior do sistema de ensino, quanto no meio social, provocaram mudanças na concepção da educação, do papel da escola na sociedade e do papel do professor no processo de aprendizagem." (VALERIEN, 1993: p.78)

     Essa ressignificação da administração escolar vem acoplada a uma noção de necessária redefinição de competências na escola, o que prenuncia (ou contata-se) esta clara reestruturação do trabalho pedagógico.

     "A transferência de tarefas e de responsabilidades (desconcentração) ou do poder de decisão (descentralização) não se faz sem repercussões sobre o papel do diretor de escola, da mesma forma como também influi no grau de participação dos membros da comunidade educativa (professores, pais, coletividade local). O diretor de escola vem assumindo, pouco a pouco, importância cada vez maior na administração. Progressivamente, ele foi levado a desempenhar, num certo sentido, todas as funções. Esta nova realidade implica que sejam redefinidas suas atribuições, a fim de que sejam evitados choques de competência. Por um lado, o poder do diretor de escola é proporcional ao do supervisor; por outro, ao dos professores." VALERIEN, 1993: p.79)

     Essa concepção gestorial (re)coloca o diretor no lugar central da estrutura de poder na escola, algo similar ao que fora defendido em outros tempos pelos precursores da Administração Científica do Trabalho na administração escolar, resgatando em novas roupagens (nem tão novas assim) o gerente taylorista do passado.

     Essas propostas somadas às iniciativas oficiais de descentralização administrativa vêm corroborar, através de um reforço incomensurável, as necessidades de competência técnica gerencial e consequentemente tentam anular as dimensões pedagógicas desta função.

     Por isso, entendemos que essa reestruturação do trabalho na escola não passa necessariamente pelos mesmos caminhos sinalizados pelas políticas neoliberais para a educação.

     Compartilhamos da constatação de que o trabalho pedagógico (ou escolar) passa por um momento de reestruturação, porém essas mudanças, ao nosso ver, nos colocam desafios que estão para além do conjunto de técnicas e procedimentos destas orientações gestoriais.

     Para nós, o papel que o diretor deve ocupar neste momento difere em muito dos "ensinamentos" e orientações da UNESCO. Ao diretor escolar cabe romper com uma postura passiva e em certa medida banalizada de acatar todas as orientações vindas de cima (das delegacias, secretarias etc...) como se fosse um funcionário burocrático do sistema. Esse diretor deve enxergar a si mesmo como um representante de um projeto político-social de educação que passa pela ruptura com um sistema seletivo, excludente, e forjar uma gestão escolar mais aberta, arejada e direcionada para os anseios populares.

     Esse diretor precisa estar atento às manifestações interiores da escola, às questões concernentes à cultura escolar, ao pedagógico, ao educativo. Para isso, é necessário que não se deixe anular ou esgotar suas potencialidades como um profissional pedagogo que possui uma especificidade: conhece as questões relativas à educação. É necessário portanto que esse profisssional conheça a história das instituições educativas da sociedade, as diversas formas de organização e formação de processos educativos que transcendem , pois são anteriores, e ultrapassam a escola.

     É nesse sentido que compreendemos hoje a formação desse diretor de escola não mais como um pedagogo habilitado em administração escolar. Defendemos que sua formação seja também (assim como as demandas oriundas da reestruturação do trabalho fabril que apontam para uma formação geral) mais ampla, flexível e mais densa.

     Para tanto ela não poderá limitar-se a ministrar conjuntos de métodos e técnicas de gestão. O que não implica dizer que estaremos abolindo a administração educacional do currículo de pedagogia. Não, estaremos sim recolocando a administração educacional no seu devido lugar: nas questões referentes à administração de políticas públicas na área educacional e à problemática da gestão e organização do trabalho escolar.

     O conteúdo da administração deveria estar presente no tronco comum dos cursos de pedagogia, sem contudo habilitar. Os saberes específicos da Administração Escolar são essenciais e indispensáveis a todos os profissionais da educação, quer pela importância e relevância em se conhecer a estrutura e funcionamento - organização e administração - de nosso sistema de ensino, quer pelo fato de que, com a gestão democrática, as eleições diretas nas escolas e os colegiados, todos participam (ou deveriam) da administração ou são "em potencial" futuros administradores escolares.

     Por outro lado, são necessários novos espaços formativos desses diretores eleitos que não passaram por cursos de pedagogia e não têm um acúmulo de experiências capaz de lhes proporcionar maior segurança no desenvolvimento de seu trabalho. Nesses casos, são necessários cursos concentrados em pequenos módulos realizados por nossas instituições públicas, que abranjam desde a administração do sistema de ensino à organização do trabalho na escola.

     Uma formação cujo eixo seja o Educador, e não a preocupação em adquirir competências gerenciais eficazes para um mundo privado.

 

* - Professora do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação de Minas Gerais.

  1. PARO, V. H. Administração escolar - introdução crítica. 5. ed. São Paulo : Cortez, 1991.

  2. ZUNG, A. K. A teoria da administração educacional: ciência e ideologia. Cadernos de Pesquisa, São Paulo nº.48. p. 39-46, fev. 1984.

  3. NOGUEIRA, M. A. O surgimento do paradigma da reprodução. Em Aberto, SP, v.9, n.46, 1990.

  4. Recente publicação da Universidade Federal de Santa Catarina traz uma rica discussão acerca do papel dos Centros de Educação dentro das universidades e sua relação com os cursos de licenciatura. Trata-se da reunião de algumas entrevistas realizadas com professores da área que oferecem enorme contribuição à discussão da formação docente. Cadernos 20, Florianópolis, jan/jul, 1994.

  5. Várias são as produções que apontam nessa direção as análises do processo de proletarização do trabalho docente, ver:

  6. ARROYO, M.G. Operários e educadores se identificam: que rumos tomará a educação brasileira. Educação e Sociedade, SP, n.5, 1980. Mestre, educador, trabalhador: organização do trabalho e profissionalização. Belo Horizonte, UFMG/FaE, 1985.

  7. Acerca da relativa autonomia conferida ao trabalho pedagógico existe muita polêmica, neste sentido consultar:

  8. CUNHA, L.A. Educação na sociologia: um objeto rejeitado? Cadernos Cedes. SP, n.27, 1992. SANTOS, O.J. Organização do processo de trabalho docente: uma análise crítica. Educação em Revista, BH, n.1, jul.1985.

  9. ARROYO, M.G. A administração da educação é um problema político. RBAE, 1 (1), Porto Alegre: jan/jun. 1983.

  10. PARO, V.H. Por Dentro da Escola Pública. São Paulo, Xamã, 1995.

  11. CHAUÍ, M. Cultura e Democracia - o discurso competente e outras falas. 3ªed.São Paulo: Moderna, 1984.

  12. Sobre o conceito de participação, consultar:

  13. MOTTA, F.C.P. Administração e participação: reflexões para a educação. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v.10, nº 2, jul/dez, 1984

  14. THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Introdução.

  15. OLIVEIRA, D.A. A escola pública frente às transformações produtivas. Cadernos de Debates. Belo Horizonte, nº1, out. 1994.

  16. A experiência realizada pelos trabalhadores da Escola Mestre Athayde demonstra de maneira singular como uma escola da rede pública municipal pôde lutar para escrever de maneira autônoma seu projeto pedagógico.

  17. OLIVEIRA,D.A. Qualidade Total na Educação: os critérios da economia privada penetrando a gestão da escola pública.

  18. CURY, C.R.J. A administração da educação brasileira, a modernização e o neoliberalismo. RBAE, Porto Alegre,v. 9, nº1, jan./jun. 1993.

  19. A descentralização administrativa nestes termos está prevista no PQTE apresentado pelo então Secretário de Estado da Educação Walfrido Silvino dos Mares Guia Neto em conferência proferida na Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais no Seminário "Educação : A Hora da Chamada" entre os dias 21 a 24 de setembro de 1991.

  20. VALERIEN, J.. Gestão da escola fundamental. 2ª ed., São Paulo: Cortez / UNESCO / MEC, 1993.